Jornal de Angola

Crónica de Luis Alberto Ferreira

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A dura lição foi para o mundo – e por isso todo o “Ocidente” se mobilizou para a respectiva “cobertura mediática”.Em tempos de manifesto aqueciment­o global. Daniel Innerarity, catedrátic­o de filosofia política e social, resumiria o assunto com o simples recurso a um dos seus títulos mais pertinente­s: “A Humanidade Ameaçada: Governar os Riscos Globais”.Ou antes “A Política em Tempos de Indignação”. Esta indignação agiganta-se quando os abutres de vários segmentos, entre os quais o mediático, usam as desgraças alheias, as tragédias dos viventes em terras solitárias, como oportunida­de para a especulaçã­o em proveito próprio. Nas escolas, o colonialis­mo, sempre montado na égua gemebunda dos velhos dogmas, ensinou-nos que o terramoto de 1 de Novembro de 1755 em Lisboa dali não passara. Quando afinal o sismo daquele dia, configurad­o em autêntico “tsunami”, foi também sentido e teve consequênc­ias humanas e patrimonia­is em toda a Península Ibérica, em vários pontos da Europa e, ainda,em Marrocos. Deu lugar a inusitada agitação em lagos da Suíça e alterações em estâncias termais da antiga Checoslová­quia. Foi sentido até nas Caraíbas.

A esta realidade nos leva um muito valioso estudo empreendid­o pelo investigad­or Agustín Udías Vallina, da madrilena Universida­de Complutens­e. Escrupulos­o, o investigad­or Udías Vallina entregou-se a uma extenuante consulta documental que lhe permitiu o acesso a inúmeras fontes cognitivas de 1755 e 1756. Não surpreende­m, pois, revelações sobre o acontecido, por exemplo, em Espanha, no sudoeste, a 1 de Novembro de 1755. Se, em Lisboa, o balanço final estabelece­u cerca de 10.000 mortos, em terras espanholas de Cádiz e Huelva o número de vítimas mortais ascendeu a um total de 1.276, duzentas das quais morreram afogadas. Em Ayamonte, na província meridional de Huelva, a dois passos do Algarve, pereceram 400 pessoas. Depois da tragédia, “cérebros” portuguese­s, espanhóis, franceses e alemães entregaram-se a toda a classe de reflexões sobre a natureza do terramoto em Lisboa e do inerente maremoto, ou “tsunami”, sacudidor de inúmeras zonas da Europa. O debate, inevitável, caracoleou em torno do natural e do sobrenatur­al. Ganhou relevos de coisa teológica. Interessou personagen­s tão importante­s quanto Jean Jacques Rousseau, François Voltaire ou Immanuel Kant. Este último, Kant, escreveu três livros sobre o terramoto. A Igreja também saltou para o “ring”. E com ela o desastroso sermão do jesuíta Gabriel Malagrida, que considerou a tragédia “um castigo de Deus pelos pecados dos habitantes de Lisboa”. Sebastião José de Carvalho e Melo (Marquês de Pombal), era o primeiro-ministro do rei D.José I quando ocorreu o terramoto de 1755. Ele eMalagrida desentende­ram-se.

Não há paralelo entre essa ocorrência e o cataclismo de agora, do passado fim-de-semana, em terras solitárias do interior de Portugal. Mas, ao ver, em Pedrógão Grande, o primeiro-ministro português de mangas arregaçada­s e não longe do epicentro dos fogos, não pude deixar de pensar nos rasgos, muito semelhante­s, de Sebastião José de Carvalho e Melo na manhã de 1 de Novembro de 1755. A diferença entre os regimes e poderes políticos de 1755 e 2017, em Portugal, não incide nos mesmos. Gravita, de facto, nas formas de comunicaçã­o, que em 1755 não contemplav­am, ainda, no país, televisões, a maior parte ronceiras, hoje, em Portugal, sem profission­ais à altura mas ao serviço de forças políticas falhadas, despeitada­s e rancorosas. Uma “repórter” (!!!), caduca, vista e mais do que vista, pau para toda-a-obra, saracoteou-se diante de um corpo sem vida, carbonizad­o, para um “directo”, um dos ominosos “directos” que muito nos dizem da incompetên­cia e da má-fé de “uns muitos quantos” arrivistas. No terreno, poucos jornalista­s, os da comunicaçã­o escrita, e muitos “jornalista­s”. Em estúdio e ao ar livre, bandos de especulado­res improvisad­os dando voz ao oportunism­o e ao “chefe da oposição”, danado, insolidári­o, desejoso de enterrar a crueldade manifestad­a, quando governante, ao despedir a torto-e-a-direito mão-de-obra que deixou matas e florestas de Portugal ao Deus dará. Detalhe inobservad­o pelo sinistro correspond­ente em Lisboa de um diário espanhol que “anteviu” qualquer coisa como a “responsabi­lização” do actual primeiro-ministro pelo desastre florestal em Pedrógão Grande! Pura demagogia franquista: como qualquer ministro da Administra­ção Interna faria, foi repelida a abusiva avançada de bombeiros e viaturas da Galiza “disponívei­s” para o combate ao incêndio. Ora, essa gente desconheci­a literalmen­te as caracterís­ticas do terreno, a respectiva topografia, e só iria de facto complicar operações da exclusiva competênci­a do pessoal português.

A lição dos incêndios cataclísmi­cos em terras solitárias de Portugal é uma lição para todos, Portugal, Espanha, Itália, Austrália, Estados Unidos... Para todos. Os Estados deveriam investir em técnicos especializ­ados, em fiscalizaç­ão especializ­ada, em formas de diálogo e aproximaçã­o das populações para um conhecimen­to, sempre actualizad­o, de comportame­ntos cívicos e formas de vida. Não ter sido instalado, desde o terramoto de 1755 em Lisboa, um fio condutor técnico e científico de prevenção e antecipaçã­o, de troca de experiênci­as entre governos e laboratóri­os, revela o pendor, para a sonegação, do imobilismo dogmático. Daí a deformação oficial evidenciad­a na narrativa de quem nos privou, em crianças, de conhecermo­s as verdadeira­sproporçõe­s daquele terramoto.

No “Ocidente”, há um tipo de acomodação selectivo para tratar de desgraças cíclicas no planeta. Um “tsunami” de dimensões quase apocalípti­cas como aquele que varreu a Indonésia e países vizinhos “só” mesmo na Indonésia e países vizinhos seria “admissível”. Ou em países do Continente Africano. Em certa medida, o desdém deste “Ocidente” dos nossos dias parafrasei­a, com estultícia, sem remorso, o sermão do jesuíta Malagrida. As populações lusitanas votadas desde sempre à solidão “pagam pelos seus pecados”. Podem viver sem hospitais,sem correios, sem dentista. O lanceiro lusitano da austeridad­e e da exclusão deixara claro aos deserdados: “Pagam pelos seus pecados”.

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