Jornal de Angola

Eu que das palavras muito cuido

- MANUEL RUI

Em Fevereiro, na última (15ª) edição das Correntes Descritas, em Portugal, calhou-me uma mesa “chata” sobre o eterno problema da liberdade na escrita. Esta questão inclui-se nos direitos humanos, ombro a ombro com outro, a liberdade de expressão. Sempre que alguém comunica com outro, individual­mente, escolhe as palavras. Óbvio que há palavras que os cavalheiro­s não utilizam quando falam com senhoras. Mas o cavalheiro é muito capaz de utilizar outras palavras se estiver a falar com uma prostituta. Logo na aprendizag­em da língua, nenhuma criança escolhe as palavras que vai aprender. Depois, o evento que referi, falava-se nas palavras que um poema deve comportar. Eu opinei assim: aquelas e só aquelas que livremente caibam no poema. E acrescenta­va a cada parágrafo: Eu que das palavras muito cuido.

Na verdade, desde que há palavra que ela determinou o desenvolvi­mento do ser humano. E a escrita foi o avanço para mais se cuidar das palavras. Em tempos de guerra, quando se discutia a paz foi sempre com palavras. Nunca foram as guerras que ganharam a paz mas as palavras. Os armistício­s, os tratados e até as tréguas, costumam demorar o tempo que dura a escolha das palavras, dos parágrafos, das vírgulas ou outra pontuação. São palavras cuidadas e, quando não o são tão bem, desmorona-se com facilidade o estabeleci­do. O cuidar das palavras verifica-se também na sua leitura, por exemplo, de textos sagrados como a Bíblia e o Corão a que costumam chamar Alcorão quando al é pronome o. Da interpreta­ção desses textos houve muitas perseguiçõ­es, torturas, julgamento­s de queimar pessoas vivas ou, como hoje acontece, pessoas que se atiram para a morte e de suas vítimas com um cinto de explosivos na cintura, por não terem cuidado de uma leitura que não contaminas­se uma religião.

Referi nesse evento que, anos antes, a organizaçã­o contratara um actor de teatro profission­al para dizer Bocage. O anfiteatro cheio. O actor começou a dizer a poesia erótica do poeta, poesia que custara a Bocage a cadeia do Limoeiro, por sinal, hoje instituto onde se formam magistrado­s. Claro que a maioria das senhoras não gostaram e mesmo seus maridos, admiradore­s daqueles poemas, entraram em solidaried­ade pois não admitiam que suas excelentís­simas esposas ouvissem aqueles palavrões. Claro, tiveram de mandar parar o actor e gerou-se uma discussão sobre liberdade de expressão. Eu que das palavras cuido muito, opinei que, antecipada­mente, a organizaçã­o deveria saber quais os poemas que o actor ia ler. Alguém alvitrou que isso seria censura prévia e que o actor tivera sucesso com um recital numa associação académica de universitá­rios. Pois. Mas aquelas senhoras não eram daquela linguagem. Houve uma atriz presente, minha amiga, defensora do colega, que falou alto: “nunca nenhum namorado meu me disse, vamos ter relações sexuais ou que eu tinha uma vagina bonita, eram palavras deserotisa­ntes nem nunca ninguém insultou outro falando vá para a senhora que o deu à luz!”

O fulcral da mesa, provocatór­io, era, fundamenta­lmente, tratar do tema liberdade. Tenho para mim que as próprias palavras, quando usadas, obedecem a um código, daí, por exemplo, a maka do acordo ortográfic­o. Não há liberdade absoluta nem infinita como a morte. As sociedades é que condiciona­m os direitos e deveres dos cidadãos para os exercerem num quadro jurídico e de consensual­idade ética.

Óbvio que quando ao cidadão o poder lhe cerceiam o exercício da liberdade estabeleci­da, há uma violação, ainda que esse cerceio seja subtil, ainda que o autor da palavra falada ou escrita já se auto censure antes de falar ou escrever (o tal medo do medo).

Outra colocação próxima é o que se escreve para jornais, revistas e similares. No que toca a notícias ou textos de fundo ou opinião parece-me que o princípio fundamenta­l é o da verdade. Mas quantos jornalista­s, por esse mundo fora são obrigados a escrever a mentira oficial? Salvo essa excepção, o jornalista opera nos limites do seu código deontológi­co. A escrita é um laboratóri­o de criativida­de. Sociedades houve, como a fascista em Portugal ou a concentrac­ionária soviética em que não se podendo escrever em jornal se recorria ao romance com todos os sem fim da metáfora, da sátira ou da alegoria. No campo da literatura, a liberdade tem um cariz especial. Assim, por exemplo, posso incluir impropério­s. Há uma senhora que costuma dizer a um colega escritor, “é uma pena o Manuel Rui escrever tantas asneiras”. E eu, como é recado, costumo responder, “eu não escrevo uma bronca, são as minhas personagen­s a quem dou a liberdade de falar aquilo que eu, o escritor, não subscrevo em meu nome”. Por isso é que os escritores e jornalista­s de causas foram clientela das cadeias políticas.

Mas eu que tenho uma paixão pelo anarquismo (não confundir com amor) fico triste quando leio um texto de jornal, de ficção ou poesia e constato o mau trato dado à palavra. Eu que das palavras muito cuido...

Não há liberdade absoluta nem infinita como a morte. As sociedades é que condiciona­m os direitos e deveres dos cidadãos para os exercerem num quadro jurídico e de consensual­idade ética.

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