Eu que das palavras muito cuido
Em Fevereiro, na última (15ª) edição das Correntes Descritas, em Portugal, calhou-me uma mesa “chata” sobre o eterno problema da liberdade na escrita. Esta questão inclui-se nos direitos humanos, ombro a ombro com outro, a liberdade de expressão. Sempre que alguém comunica com outro, individualmente, escolhe as palavras. Óbvio que há palavras que os cavalheiros não utilizam quando falam com senhoras. Mas o cavalheiro é muito capaz de utilizar outras palavras se estiver a falar com uma prostituta. Logo na aprendizagem da língua, nenhuma criança escolhe as palavras que vai aprender. Depois, o evento que referi, falava-se nas palavras que um poema deve comportar. Eu opinei assim: aquelas e só aquelas que livremente caibam no poema. E acrescentava a cada parágrafo: Eu que das palavras muito cuido.
Na verdade, desde que há palavra que ela determinou o desenvolvimento do ser humano. E a escrita foi o avanço para mais se cuidar das palavras. Em tempos de guerra, quando se discutia a paz foi sempre com palavras. Nunca foram as guerras que ganharam a paz mas as palavras. Os armistícios, os tratados e até as tréguas, costumam demorar o tempo que dura a escolha das palavras, dos parágrafos, das vírgulas ou outra pontuação. São palavras cuidadas e, quando não o são tão bem, desmorona-se com facilidade o estabelecido. O cuidar das palavras verifica-se também na sua leitura, por exemplo, de textos sagrados como a Bíblia e o Corão a que costumam chamar Alcorão quando al é pronome o. Da interpretação desses textos houve muitas perseguições, torturas, julgamentos de queimar pessoas vivas ou, como hoje acontece, pessoas que se atiram para a morte e de suas vítimas com um cinto de explosivos na cintura, por não terem cuidado de uma leitura que não contaminasse uma religião.
Referi nesse evento que, anos antes, a organização contratara um actor de teatro profissional para dizer Bocage. O anfiteatro cheio. O actor começou a dizer a poesia erótica do poeta, poesia que custara a Bocage a cadeia do Limoeiro, por sinal, hoje instituto onde se formam magistrados. Claro que a maioria das senhoras não gostaram e mesmo seus maridos, admiradores daqueles poemas, entraram em solidariedade pois não admitiam que suas excelentíssimas esposas ouvissem aqueles palavrões. Claro, tiveram de mandar parar o actor e gerou-se uma discussão sobre liberdade de expressão. Eu que das palavras cuido muito, opinei que, antecipadamente, a organização deveria saber quais os poemas que o actor ia ler. Alguém alvitrou que isso seria censura prévia e que o actor tivera sucesso com um recital numa associação académica de universitários. Pois. Mas aquelas senhoras não eram daquela linguagem. Houve uma atriz presente, minha amiga, defensora do colega, que falou alto: “nunca nenhum namorado meu me disse, vamos ter relações sexuais ou que eu tinha uma vagina bonita, eram palavras deserotisantes nem nunca ninguém insultou outro falando vá para a senhora que o deu à luz!”
O fulcral da mesa, provocatório, era, fundamentalmente, tratar do tema liberdade. Tenho para mim que as próprias palavras, quando usadas, obedecem a um código, daí, por exemplo, a maka do acordo ortográfico. Não há liberdade absoluta nem infinita como a morte. As sociedades é que condicionam os direitos e deveres dos cidadãos para os exercerem num quadro jurídico e de consensualidade ética.
Óbvio que quando ao cidadão o poder lhe cerceiam o exercício da liberdade estabelecida, há uma violação, ainda que esse cerceio seja subtil, ainda que o autor da palavra falada ou escrita já se auto censure antes de falar ou escrever (o tal medo do medo).
Outra colocação próxima é o que se escreve para jornais, revistas e similares. No que toca a notícias ou textos de fundo ou opinião parece-me que o princípio fundamental é o da verdade. Mas quantos jornalistas, por esse mundo fora são obrigados a escrever a mentira oficial? Salvo essa excepção, o jornalista opera nos limites do seu código deontológico. A escrita é um laboratório de criatividade. Sociedades houve, como a fascista em Portugal ou a concentracionária soviética em que não se podendo escrever em jornal se recorria ao romance com todos os sem fim da metáfora, da sátira ou da alegoria. No campo da literatura, a liberdade tem um cariz especial. Assim, por exemplo, posso incluir impropérios. Há uma senhora que costuma dizer a um colega escritor, “é uma pena o Manuel Rui escrever tantas asneiras”. E eu, como é recado, costumo responder, “eu não escrevo uma bronca, são as minhas personagens a quem dou a liberdade de falar aquilo que eu, o escritor, não subscrevo em meu nome”. Por isso é que os escritores e jornalistas de causas foram clientela das cadeias políticas.
Mas eu que tenho uma paixão pelo anarquismo (não confundir com amor) fico triste quando leio um texto de jornal, de ficção ou poesia e constato o mau trato dado à palavra. Eu que das palavras muito cuido...
Não há liberdade absoluta nem infinita como a morte. As sociedades é que condicionam os direitos e deveres dos cidadãos para os exercerem num quadro jurídico e de consensualidade ética.