Medições para trumunos e eleições democráticas
As eleições para chefes e subchefes de turma eram, para a miudagem acabada de sair da escola primária, uma das novidades do ensino secundário e dos poucos actos com laivos democráticos que conheciam.
Os eleitos eram, quase sempre, os repetentes. Estatuto a respeitar. Porquê? Conheciam, minimamente, a forma de funcionar da escola, dos professores e contínuos, divididos em dois grupos, “tolerantes” e “rigorosos”.
Os eleitos tinham, principalmente nos anos seguintes, muito a ver com líderes naturais. Os que se impunham e eram admirados. Não tanto pelos bons resultados académicos. Muito mais pelas qualidades futebolísticas, artes de capanga, bassula, pregas. Trazidas dos bairros.
O chefe de turma - na ausência dele, o subchefe - era líder eleito. Porta-voz do colectivo ou de quem o integrasse. Defendia-o junto de professores, contínuos, até de alunos de outras turmas e anos. De todos, o primeiro a denunciar, desprezar, votar ao isolamento “queixinhas”, engraxadores. Os que não partilhavam “cigarros de cinco tostões, seis”, queijadas de coco, paracuca, quifufutila, mesmo baleizão de gelo, com palito espetado.
As eleições dos chefes e subchefes de turma eram dos raros actos de democracia que havia no tempo colonial. Mas, diga-se, em abono da verdade, não eram únicos. Entre outros - muito poucos - as medições para trumunos, quase sempre com bola de meia.
Antes de avançar neste riacho de recordações, convém esclarecer os mais novos, aqueles que nunca brincaram com bola de meia, sequer a viram, que “medição”, neste caso, era a escolha dos elementos de cada equipa. Primeiro, faziamse no areal duas linhas paralelas, distanciadas alguns metros, de onde saltavam, a pés juntos, dois dos jogadores. Quase sempre os melhores.
O que desse o maior pulo começava a “caminhada” de passos curtos. De dedos do pé a bater no calcanhar. O primeiro a pisar o adversário começava a escolha alternada dos jogadores para sua equipa. Que tanto podiam ser de onze, cinco, qualquer número. Se houvesse um a mais era suplente de qualquer das formações. Ninguém ficava de fora.
Nestes trumunos de escola, bairro ou rua não havia árbitros. Eram os participantes no jogo que decidiam se era falta ou não. As balizas, de pedra ou sacola, não tinham, naturalmente travessão. Nem havia marcação de linhas. Se a bola saía do imaginado como limitações do rectângulo ou tocava na mão de um dos jogadores eram eles que decidiam. Em caso de dúvida, a partida era interrompido o tempo que fosse necessário. Discutia-se até haver consenso. Era a democracia a funcionar em pleno. De forma natural. Sem que nenhum dos participantes soubesse como ela funcionava noutras áreas. A maioria nem conhecia a palavra. Nascera num país ocupado, amordaçado, sem voz plural. Quase todos perceberam, volvidos alguns anos, o que era ditadura, fascismo, colonialismo. Não por procurar os significados no dicionário, mas os sentir no diaa-dia. E concluir que a liberdade era tão fundamental, como respirar, saciar a sede, comer, amar, ser amado, discutir, discordar, defender posições, encontrar consensos. Como nos tempos da bola de meia ou das eleições para chefes de turma.
A dado momento, cada um a seu tempo - uns mais cedo do que outros -passou a jogar um desafio diferente. Com outros opositores. As equipas deixaram de ser escolhidas em medições. A consciência, a única escolha. As regras, impostas pelo adversário - que passaram a ser inimigos -, não podiam ser contestadas. No tempo do colonialismo eram assim.
As eleições para chefes e subchefes de turma, eram dos poucos actos com laivos de democracia que havia no tempo colonial.