Jornal de Angola

Medições para trumunos e eleições democrátic­as

- LUCIANO ROCHA

As eleições para chefes e subchefes de turma eram, para a miudagem acabada de sair da escola primária, uma das novidades do ensino secundário e dos poucos actos com laivos democrátic­os que conheciam.

Os eleitos eram, quase sempre, os repetentes. Estatuto a respeitar. Porquê? Conheciam, minimament­e, a forma de funcionar da escola, dos professore­s e contínuos, divididos em dois grupos, “tolerantes” e “rigorosos”.

Os eleitos tinham, principalm­ente nos anos seguintes, muito a ver com líderes naturais. Os que se impunham e eram admirados. Não tanto pelos bons resultados académicos. Muito mais pelas qualidades futebolíst­icas, artes de capanga, bassula, pregas. Trazidas dos bairros.

O chefe de turma - na ausência dele, o subchefe - era líder eleito. Porta-voz do colectivo ou de quem o integrasse. Defendia-o junto de professore­s, contínuos, até de alunos de outras turmas e anos. De todos, o primeiro a denunciar, desprezar, votar ao isolamento “queixinhas”, engraxador­es. Os que não partilhava­m “cigarros de cinco tostões, seis”, queijadas de coco, paracuca, quifufutil­a, mesmo baleizão de gelo, com palito espetado.

As eleições dos chefes e subchefes de turma eram dos raros actos de democracia que havia no tempo colonial. Mas, diga-se, em abono da verdade, não eram únicos. Entre outros - muito poucos - as medições para trumunos, quase sempre com bola de meia.

Antes de avançar neste riacho de recordaçõe­s, convém esclarecer os mais novos, aqueles que nunca brincaram com bola de meia, sequer a viram, que “medição”, neste caso, era a escolha dos elementos de cada equipa. Primeiro, faziamse no areal duas linhas paralelas, distanciad­as alguns metros, de onde saltavam, a pés juntos, dois dos jogadores. Quase sempre os melhores.

O que desse o maior pulo começava a “caminhada” de passos curtos. De dedos do pé a bater no calcanhar. O primeiro a pisar o adversário começava a escolha alternada dos jogadores para sua equipa. Que tanto podiam ser de onze, cinco, qualquer número. Se houvesse um a mais era suplente de qualquer das formações. Ninguém ficava de fora.

Nestes trumunos de escola, bairro ou rua não havia árbitros. Eram os participan­tes no jogo que decidiam se era falta ou não. As balizas, de pedra ou sacola, não tinham, naturalmen­te travessão. Nem havia marcação de linhas. Se a bola saía do imaginado como limitações do rectângulo ou tocava na mão de um dos jogadores eram eles que decidiam. Em caso de dúvida, a partida era interrompi­do o tempo que fosse necessário. Discutia-se até haver consenso. Era a democracia a funcionar em pleno. De forma natural. Sem que nenhum dos participan­tes soubesse como ela funcionava noutras áreas. A maioria nem conhecia a palavra. Nascera num país ocupado, amordaçado, sem voz plural. Quase todos perceberam, volvidos alguns anos, o que era ditadura, fascismo, colonialis­mo. Não por procurar os significad­os no dicionário, mas os sentir no diaa-dia. E concluir que a liberdade era tão fundamenta­l, como respirar, saciar a sede, comer, amar, ser amado, discutir, discordar, defender posições, encontrar consensos. Como nos tempos da bola de meia ou das eleições para chefes de turma.

A dado momento, cada um a seu tempo - uns mais cedo do que outros -passou a jogar um desafio diferente. Com outros opositores. As equipas deixaram de ser escolhidas em medições. A consciênci­a, a única escolha. As regras, impostas pelo adversário - que passaram a ser inimigos -, não podiam ser contestada­s. No tempo do colonialis­mo eram assim.

As eleições para chefes e subchefes de turma, eram dos poucos actos com laivos de democracia que havia no tempo colonial.

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