Jornal de Angola

OSVALDO GONÇALVES

A metamorfos­e do Homem Mau

- Osvaldo Gonçalves

A metamorfos­e do Homem Mau

Apesar dos conselhos reiterados dos amigos, o garoto encheu-se de coragem e foi bater ao portão do Homem Mau para recuperar a bola que um pé desajeitad­o tinha feito voar por cima do muro. Não fosse uma bola nova de cautchú e ele decerto teria seguido as advertênci­as, tal era a fama do habitante daquela casa.

Na vizinhança, todos os dias comentava-se mais um acto ignóbil do homem, fosse uma surra na mulher e nos filhos, fosse o pneu furado de um carro estacionad­o em frente à sua casa, um gato morto com veneno de rato ou enforcado numa armadinha de laço, um cão apedrejado ou cajadado, uma vizinha muxoxada e insultada, um próximo ameaçado de morte com arma de fogo.

Os vizinhos evitavam o contacto com o dito cujo e alguns atravessav­am a rua mal o vissem, não fosse o homem escolhê-los para vítima do dia. A índole do Homem Mau era má de tal ordem que muitos chegavam a interrogar-se sobre se algum dia tinha sido criança. Podia aquele poço de maldade ter vindo ao mundo de forma natural, chorado o choro dos indefesos, antes de ser levado ao peito de uma mulher para saciar a fome e a sede após tão longa viagem?!

Nas conversas mantidas no bar da esquina, sempre em surdina, porque as paredes costumam ter ouvidos e por algum sopro de vento podia ir parar aos de tão temido e ignominios­o personagem, não fosse o diabo tecê-las, chegouse uma vez a contar que ao nascer, o Homem Mau havia engolido o próprio choro e, quando a parteira lhe aviou duas valentes palmadas nas nádegas, fez a primeira prova de vida não com o soltar da goela, mas com um sonoro peido.

Mal o garoto bateu ao portão, o Homem Mau desatou a vociferar impropério­s, os habituais e outros nunca antes ouvidos até aparecer de cajado na mão direita e a bola na esquerda, a perguntar: “O que queres daqui, ó mal-parido? É isto que procuras? Então, olha o que faço à tua bola!”

Encostou o cajado à parede, sacou do bolso das calças uma navalha de meia-lua, cuja lâmina brilhava de tão afiada, e começou a descascar a bola, não como se fosse uma laranja, mas retirando um a um os losângos do cautchú. Finda a primeira camada, atirouse à segunda e depois à terceira, à quarta e assim sucessivam­ente.

O miúdo chorava a perda da bola nova, que minguava a cada camada de cautchú que o Homem Mau arrancava. Mas, a certa altura, parou de chorar e a sua expressão passou a ser de surpresa, primeiro, de incredulid­ade, depois, de alegria e, por fim, de gozo.

Com o olhar fixo na bola e na navalha de meia-lua com que a descascava, o Homem Mau nem se apercebeu dessas mudanças no semblante do garoto. Sentia prazer em fazer minguar a bola, mais prazer do que nas vezes anteriores, em que, com um simples golpe de navalha deixava as bolas inutilizad­as, sem hipótese sequer de remendos. Quando a bola já estava reduzida ao tamanho de uma missanga, atirou-a ao chão: “Toma lá essa porcaria, seu estafermo!”

Foi, então, que viu o rapaz com um sorriso maroto no rosto. Gritou de pavor, mas ao contrário de antes ninguém o ouviu na rua além do rapaz que agora era um gigante comparado com ele. Enquanto descascava a bola, fazendo-a minguar a cada camada de cautchú que retirava com a navalha de meia-lua, o Homem Mau não se apercebeu que também ele diminuía de tamanho na mesma proporção. Não passava agora de um minúsculo lilliputea­no diante do gigante Gulliver. Agonizante, viu uma mão enorme pegarlhe entre o polegar e o indicador para colocá-lo numa caixa de fósforos.

- Venham! Venham todos ver um grilo em forma de gente!

O garoto encheu-se de coragem e foi bater ao portão do Homem Mau para recuperar a bola que um pé desajeitad­o tinha feito voar por cima do muro

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Angola