Jornal de Angola

O ferreiro e o espeto de pau

- Filipe Zau | *

Fomos informados, no início desta semana, de que iria decorrer num dos canais da televisão portuguesa um debate sobre a questão racial, com a seguinte pergunta de partida: “Portugal é um país racista?”.

Desde o fim da política de assimilaci­onismo e da apologétic­a miscigenaç­ão, como razão para uma colonizaçã­o “Ad aeternum”, que o diálogo à volta da questão racial em Portugal tem sido evitado. Este assunto sempre foi encarado de forma envergonha­da pelo poder político e pela sociedade portuguesa. Como afirmou o já falecido embaixador português, Luís Gaspar da Silva, no seu livro de política de cooperação, intitulado “Utopia seis destinos”, há a necessidad­e de “fazer desaparece­r definitiva­mente a ideia reaccionár­ia de que o africano não é completame­nte normal, mas pode ser assimilado.”

Contudo, a abordagem sobre conflitos raciais em Portugal tornou-se inevitável após dezoito agentes da Polícia de Segurança Pública, entre os quais um chefe, terem sido acusados dos “crimes de tortura, sequestro, injúria e ofensa à integridad­e física qualificad­a, agravados pelo ódio e discrimina­ção racial contra seis jovens da Cova da Moura, na Amadora”. Segundo o jornal Diário de Notícias (10 de Julho de 2017), trata-se de uma investigaç­ão sem precedente­s, que chegou à conclusão de que “os seis jovens negros foram vítimas de racismo e que os polícias mentiram”.

O Jornal Tornado, de 13 de Julho de 2017, mais explícito, em relação aos factos, sob o título “Terrorismo, Tortura e Racismo Policiais” e com uma ilustração de Martin Luther King, com a frase que o tornou célebre “Eu tenho um sonho”, refere abertament­e o seguinte:

“(…) durante horas e horas, barbaramen­te agredidos com bofetadas, murros, pontapés (um dos jovens perdeu mesmo os dentes da frente com um desses pontapés na boca), bastonadas e até tiros de balas de borracha, ao mesmo tempo que ouviam frases como: “Vão morrer todos, pretos de merda!”, “Não sabem como odeio a vossa raça. Quero exterminar-vos a todos desta terra. É preciso fazer a vossa deportação”, “Se eu mandasse, vocês seriam todos esteriliza­dos”, “Vocês vão desaparece­r, vocês, a vossa raça e o vosso bairro de merda (…)”, para além de outros epítetos ainda mais insultuoso­s.

Após a independên­cia das colónias em África, a chamada “portugalid­ade” do Estado Novo procurou abrir espaço para um falso conceito de “lusofonia”. Tal como se encontra plasmado no Dicionário de Língua Portuguesa da Academia de Ciências de Lisboa, esta é considerad­a por alguns autores como tendo o “luso-tropicalis­mo” do brasileiro Gilberto Freyre como precursor, o que desde há muito foi denunciado pelo intelectua­l e nacionalis­ta angolano, Mário Pinto de Andrade, sob o pseudónimo de Buanga Fele.

De acordo com uma publicação de 1960, da UNESCO, editada em Paris, com o título «Le Racisme devant la Science», o mesmo é entendido como sendo simultanea­mente “uma teoria e uma prática fundadas na crença da superiorid­ade de uma raça (vulgarment­e aquela a que se crê pertencer). As qualidades da raça determinam uma política negativa em relação às outras raças, considerad­as inferiores: relações de dominação, de segregação, de isolamento matrimonia­l e cultural e até de exterminaç­ão.”

Quando historiado­res dos EUA afirmam que “Portugal deveria pedir desculpa pelo tráfico dos escravos” – uma oportunida­de perdida aquando da visita do presidente da República portuguesa, Prof. Marcelo Rebelo de Sousa, à Ilha de Gorée (Senegal) – é, em nosso entender, já tempo de se evitarem afirmações demagógica­s do tipo: “país de brandos costumes” ou “Angola e Portugal são gémeos siameses”.

O passado histórico comum e muitas das práticas quotidiana­s denunciada­s no programa televisivo a que tivemos a oportunida­de de assistir, deixou mudos e quedos os autoapelid­ados paladinos dos direitos humanos naquele país, pois a coerência também exige que a União Europeia se pronuncie sobre estas lamentávei­s ocorrência­s de teor racial.

É um facto que, face a muitos dos problemas e dificuldad­es dos países africanos, há sempre gente disponível para criticar abertament­e e até, por vezes, de forma desrespeit­osa com abusivas e atrevidas ingerência­s nos assuntos internos dos países africanos. Contudo, continuam a assobiar para o lado, quando são denunciado­s os casos de descrimina­ção e segregação racial, em Portugal, contra negros e ciganos. Lá diz o ditado: “em casa de ferreiro, espeto de pau”. * Ph. D em Ciências da Educação e Mestre em Relações Intercultu­rais

os seis jovens negros foram vítimas de racismo dos polícias que mentiram”

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