O ferreiro e o espeto de pau
Fomos informados, no início desta semana, de que iria decorrer num dos canais da televisão portuguesa um debate sobre a questão racial, com a seguinte pergunta de partida: “Portugal é um país racista?”.
Desde o fim da política de assimilacionismo e da apologética miscigenação, como razão para uma colonização “Ad aeternum”, que o diálogo à volta da questão racial em Portugal tem sido evitado. Este assunto sempre foi encarado de forma envergonhada pelo poder político e pela sociedade portuguesa. Como afirmou o já falecido embaixador português, Luís Gaspar da Silva, no seu livro de política de cooperação, intitulado “Utopia seis destinos”, há a necessidade de “fazer desaparecer definitivamente a ideia reaccionária de que o africano não é completamente normal, mas pode ser assimilado.”
Contudo, a abordagem sobre conflitos raciais em Portugal tornou-se inevitável após dezoito agentes da Polícia de Segurança Pública, entre os quais um chefe, terem sido acusados dos “crimes de tortura, sequestro, injúria e ofensa à integridade física qualificada, agravados pelo ódio e discriminação racial contra seis jovens da Cova da Moura, na Amadora”. Segundo o jornal Diário de Notícias (10 de Julho de 2017), trata-se de uma investigação sem precedentes, que chegou à conclusão de que “os seis jovens negros foram vítimas de racismo e que os polícias mentiram”.
O Jornal Tornado, de 13 de Julho de 2017, mais explícito, em relação aos factos, sob o título “Terrorismo, Tortura e Racismo Policiais” e com uma ilustração de Martin Luther King, com a frase que o tornou célebre “Eu tenho um sonho”, refere abertamente o seguinte:
“(…) durante horas e horas, barbaramente agredidos com bofetadas, murros, pontapés (um dos jovens perdeu mesmo os dentes da frente com um desses pontapés na boca), bastonadas e até tiros de balas de borracha, ao mesmo tempo que ouviam frases como: “Vão morrer todos, pretos de merda!”, “Não sabem como odeio a vossa raça. Quero exterminar-vos a todos desta terra. É preciso fazer a vossa deportação”, “Se eu mandasse, vocês seriam todos esterilizados”, “Vocês vão desaparecer, vocês, a vossa raça e o vosso bairro de merda (…)”, para além de outros epítetos ainda mais insultuosos.
Após a independência das colónias em África, a chamada “portugalidade” do Estado Novo procurou abrir espaço para um falso conceito de “lusofonia”. Tal como se encontra plasmado no Dicionário de Língua Portuguesa da Academia de Ciências de Lisboa, esta é considerada por alguns autores como tendo o “luso-tropicalismo” do brasileiro Gilberto Freyre como precursor, o que desde há muito foi denunciado pelo intelectual e nacionalista angolano, Mário Pinto de Andrade, sob o pseudónimo de Buanga Fele.
De acordo com uma publicação de 1960, da UNESCO, editada em Paris, com o título «Le Racisme devant la Science», o mesmo é entendido como sendo simultaneamente “uma teoria e uma prática fundadas na crença da superioridade de uma raça (vulgarmente aquela a que se crê pertencer). As qualidades da raça determinam uma política negativa em relação às outras raças, consideradas inferiores: relações de dominação, de segregação, de isolamento matrimonial e cultural e até de exterminação.”
Quando historiadores dos EUA afirmam que “Portugal deveria pedir desculpa pelo tráfico dos escravos” – uma oportunidade perdida aquando da visita do presidente da República portuguesa, Prof. Marcelo Rebelo de Sousa, à Ilha de Gorée (Senegal) – é, em nosso entender, já tempo de se evitarem afirmações demagógicas do tipo: “país de brandos costumes” ou “Angola e Portugal são gémeos siameses”.
O passado histórico comum e muitas das práticas quotidianas denunciadas no programa televisivo a que tivemos a oportunidade de assistir, deixou mudos e quedos os autoapelidados paladinos dos direitos humanos naquele país, pois a coerência também exige que a União Europeia se pronuncie sobre estas lamentáveis ocorrências de teor racial.
É um facto que, face a muitos dos problemas e dificuldades dos países africanos, há sempre gente disponível para criticar abertamente e até, por vezes, de forma desrespeitosa com abusivas e atrevidas ingerências nos assuntos internos dos países africanos. Contudo, continuam a assobiar para o lado, quando são denunciados os casos de descriminação e segregação racial, em Portugal, contra negros e ciganos. Lá diz o ditado: “em casa de ferreiro, espeto de pau”. * Ph. D em Ciências da Educação e Mestre em Relações Interculturais
os seis jovens negros foram vítimas de racismo dos polícias que mentiram”