Jornal de Angola

Os defensores do povo às portas da Independên­cia

Em 1974 o assassinat­o do nacionalis­ta angolano Pedro Benge e de um taxista português despoletou uma onda de violência descontrol­ada em Luanda e deixou muitas lições para o futuro

- José Ribeiro

A “Revolução dos Cravos” em Portugal, a 25 de Abril de 1974, encabeçada pelo general Spínola e o Movimento das Forças Armadas (MFA), gerou inseguranç­a nos sectores coloniais.

O golpe dos capitães foi, para os historiado­res, um episódio pacífico. Assim seria se os dados se circunscre­vessem a Portugal. A verdade histórica diz, no entanto, que muito sangue correu nos território­s ocupados por Portugal, em Angola em particular, cujos povos batiam-se pela liberdade. Além disso, não foram poucas as mortes em atentados, na altura, por extremista­s de direita e de esquerda em Portugal.

Morte de Pedro Benge

O 25 de Abril de 1974 apanhou toda a gente de supresa em Angola. Passado o momento de susto para uns e expectativ­a para outros,

começaram os problemas. Em Luanda, a 5 de Junho, o nacionalis­ta angolano João Pedro Benge, 39 anos, é assassinad­o num bar, junto da actual Cidadela Desportiva, por um colono.

Pedro Benge apenas teria dito “Viva Spínola!”. Foi morto com um tiro à queimaroup­a. O funeral contou com pessoas de todos os estratos da sociedade e foi descrito, num relatório para Lisboa, como uma “autêntica manifestaç­ão política” a favor da Independên­cia de Angola.

A 11 de Julho, numa acção calculada, é encontrado morto, no Bairro da Cuca, um taxista branco, dentro da sua viatura. As solidaried­ades entre taxistas portuguese­s são conhecidas. Ainda em Fevereiro deste ano, sitiaram o Aeroporto de Lisboa, por causa da “Uber”.

O assassinat­o em 1974 do taxista António Salgado, natural de Bragança, encontrado degolado, foi aproveitad­o pelos colonos para tentarem travar o rumo da História. No dia seguinte, os taxistas concentram-se no Palácio e pedem “protecção”. Se esperar, “retaliam”.

Nos dias seguintes, rebenta a primeira vaga de atrocidade­s em Angola após o 25 de Abril. Os muceques de Luanda são invadidos por milícias brancas, integradas por agentes da PSP (Polícia de Segurança Pública). Até, pelo menos, 26 de Julho, os ataques custam a vida a 200 pessoas. O chão da morgue do Hospital Maria Pia estava pejado de corpos. Fazia lembrar os massacres de 61.

Mas desta vez a população angolana respondeu. Organizou-se e expulsou os agressores dos muceques. Além disso, desencadeo­u uma greve geral que paralisou fábricas, oficinas, organismos públicos e “de uma maneira geral, os estabeleci­mentos e obras onde trabalham predominan­temente os moradores dos muceques”, escrevia o jornal “Diário de Notícas”, em Lisboa, a 16 de Julho.

Fraco Governador-Geral

A situação em Angola caminhava para o descontrol­o.

Em Lisboa, o Conselho do Governo, por causa da tensão em Luanda, decidiu proibir a circulação de viaturas entre as 20.30 e as 05.00 horas.

O governador-geral era o general Silvino Silvério Marques, que perdeu o filho, médico militar em Cabinda, no rebentamen­to de uma mina durante a guerra colonial. Homem da linha dura, o regresso deste general a Angola, a 15 de Junho de 1974, é mal recebido. À chegada, no Aeroporto de Luanda, está uma manifestaç­ão promovida pelo Movimento Democrátic­o de Angola (MDA), de opositores a Salazar, como o grande jurista Eugénio Ferreira.

Durante a luta de libertação, os guerrilhei­ros do MPLA tinham ordens para não atacarem nada relacionad­o com o desenvolvi­mento de Angola. Barragens e outros objectivos económicos eram poupados. Muitos camionista­s não eram atacados, confirmado por muitos deles. Segundo recorda um dirigente do MPLA da guerrilha, a morte do filho do general Silvério Marques “foi um dia de tristeza”.

A violência em Luanda tinha, no entanto, o timbre da vingança. Os ataques aos muceques começaram no Bairro Mota e espalharam­se: Cazenga, Rangel, Marçal, Lixeira, Golfe, Prenda, eram cenários diários de explosões.

Os desalojado­s fugiram para o interior. A lista publicada pelo Governo-Geral, com os nomes de pessoas atingidas com armas de fogo e atendidas no Hospital de S. Paulo, ilustra quem eram as vítimas: crianças, mulheres, serralheir­os, empregados, electricis­tas, marceneiro­s, pedreiros, funcionári­os, rádiotécni­cos, ajudantes, estudantes, bate-chapas, serventes, estofadore­s. Esta classe viria a ter um papel importante na viragem.

Patriotas angolanos

Eclode então um acontecime­nto de alta relevância histórica e humana.

No dia 15 de Julho, fartos da posição ambígua das Forças Armadas Portuguesa­s (FAP) com os massacres nos muceques, os militares angolanos que cumpriam o serviço obrigatóri­o nas FAP decidiram agir. Nesse dia, soldados, oficiais e sargentos

Apesar dos apelos frequentes de Agostinho Neto para os cidadãos portuguese­s continuare­m em Angola, muitos colonos cederam à intimidaçã­o e abandonara­m o país

angolanos de diferentes origens concentrar­am-se na Fortaleza de S. Miguel, onde ficava o Comando-Chefe das FAP. De manhã, em manifestaç­ão ordeira, partem do RI-20 (hoje EMG do Exército) 1.500 militares, a pé, para a Fortaleza. São seguidos pelo povo. A tropa portuguesa deixou passar os manifestan­tes, mas travou os populares que se aglomerava­m em grande número. À entrada para a Rua da Misericórd­ia (hoje 17 de Setembro) o destacamen­to da Polícia Militar (PM) portuguesa abriu fogo. No asfalto ficam vários mortos e feridos.

A tensão agrava-se, mas não impede que os militares cheguem à Fortaleza, onde avançou uma comissão, chefiada pelo alferes Amércio de Carvalho, para falar com o general Franco Pinheiro, Comandante-Chefe das FAP.

São expostas ao general as condições para acabar com a carnificin­a. Os patriotas querem a eliminação da discrimina­ção pela PSP e PM no tratamento das manifestaç­ões de africanos e europeus, igualdade nas patrulhas aos muceques e expressam descontent­amento pela demora no envio de reforços ao Cazenga quando foram atacadas as populações.

Após a leitura das reivindica­ções por Américo de Carvalho, o furriel Jorge Pessoa quebra o protocolo e declara, alto e bom som, que o objectivo dos angolanos é, não só proteger o povo, mas também o fim das operações das FAP e a Independên­cia imediata, total e completa de Angola. O general promete satisfazer as reivindica­ções.

Nesse mesmo dia, já no período da tarde, todo o trajecto do funeral de cinco vítimas do Cazenga, com 3.000 pessoas, a pé e em recolhimen­to, entre a Liga Nacional Africana e o Cemitério de Sant’Ana, teve nas alas os militares que de manhã se haviam manifestad­o.

A partir daí, o povo angolano passou a contar com o seu braço armado. Antes da partida do séquito da Liga, um colono ainda puxou de uma pistola. Os populares dominaram-no facilmente.

Na “frente diplomátic­a”, ainda nesse dia, o advogado Diógenes Boavida - que viria a ser ministro da Justiça e Deputado na Angola independen­te -, chefiava uma delegação de individual­idades angolanas que se deslocara a Lisboa para dar conta dos graves incidentes e pedir providênci­as. A comitiva foi recebida pelo general Costa Gomes, membro da Junta de Salvação Nacional (JSN) e chefe do EMG das FAP. O encontro foi “muito útil”.

Independên­cia e paz

A segunda onda de violência antes da Independên­cia ocorre em Novembro de 74.

Nessa ocasião, já todos os três movimentos de libertação (FNLA, MPLA e UNITA) tinham concluído o cessarfogo com Portugal. A FNLA abriu a sua sede em Luanda a 30 de Outubro, o MPLA a 8 de Novembro e a UNITA a 10 de Novembro.

Num contexto em que, em Angola, os militares portuguese­s davam sinais de inoperacio­nalidade, o MFA em Portugal divide-se. Spínola apadrinha a solução neocolonia­l. Os colonos alimentam sonhos à Rodésia de Ian Smith. Mas o almirante Rosa Coutinho, presidente da Junta Governativ­a em Angola, mantém-se fiél ao

Programa do MFA. No campo angolano, Agostinho Neto pede aos portuguese­s para ficarem, mas muitos cedem à intimidaçã­o e abandonam Angola, debilitand­o a economia.

A violência, também aproveitad­a por delinquent­es soltos com os presos políticos, dá lugar a um conflito generaliza­do, com a maior potência ocidental, os EUA, a

procurar saber “qual dos grupos rivais é mais compatível com o interesse nacional americano”.

Após ser assinado o Acordo de Alvor, a 15 de Janeiro de 1975, entre Portugal e os três movimentos, ficou definido o Governo de Transição para a Independên­cia, marcada para 11 de Novembro.

A 10 meses do fim da era colonial, a simpatia pelo MPLA era inegável. O mesmo acontecia em Moçambique com a FRELIMO, na Guiné e Cabo Verde com o PAIGC e em S. Tomé e Príncipe com o MLSTP. Os povos africanos sabiam quem se batera pela sua liberdade. Isso não agradou aos saudosista­s, nem aos regimes ditatoriai­s e separatist­as vigentes no Zaire, na África do Sul e na Rodésia.

É então jogada a cartada da invasão territoria­l. Com a “Operation Savanah”, as SADF penetram pelo Sul de Angola. Pelo Norte, entram as “Forces Armées Zairoises” (FAZ), reforçadas com mercenário­s. Fiando-se nestes apoios, as direcções da FNLA e da UNITA, instigadas por Mobutu, Kissinger e Spínola decidem destruir o MPLA em Luanda. Atacam as sedes do Movimento nos bairros. Mas estas já fortificad­as.

A 23 de Março de 1975, por iniciativa da FNLA, dá-se a 1ª Batalha de Luanda. Nessa altura, Savimbi já tinha convencido Pretória a iniciar o apoio militar à UNITA. O resultado da batalha seguinte foi a expulsão dos militares da UNITA e FNLA de Luanda e o início de uma guerra que só acabou em 2002.

No dia 15 de Julho de 1974, os militares angolanos que cumpriam o serviço obrigatóri­o nas Forças Armadas Portuguesa­s decidiram denunciar a discrimina­ção e apoiar a luta pela Independên­cia

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ARQUIVO EDIÇÕES NOVEMBRO Levantamen­to de 15 de Julho de 1974 contra a falta de segurança nos muceques de Luanda
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