Jornal de Angola

Palavras e memória

- MANUEL RUI

Em Coimbra, fui viver para uma casa onde já viviam estudantes idos daqui. Era o princípio de um aprendizad­o do que já ouvira falar como algo de inevitável, a independên­cia da nossa terra. Uma vez por mês, de manhã, metiam-nos, por debaixo da porta, uma pequena revista, impressa em papel áspero, com textos e desenhos religiosos. Na capa lia-se o título: O CAVALEIRO DA IMACULADA – pela conversão da Rússia, publicação mensal de inspiração cristã fundada pelo padre Ismael de Matos em 1960. Desfolháva­mos aquela publicação e deitávamos fora. O que mais nos irritava era a palavra Rússia em vez de União Soviética.

Para além de livros e panfletos clandestin­os, um de nós, o que tinha cama em vez de divã, colecção de discos, gira discos e um bom rádio, nele ouvíamos, baixinho, rádio Moscovo, o noticiário que dava desenvolvi­mentos da luta armada em Angola, referencia­va Agostinho Neto e destacava os elevados índices de qualidade das universida­des, das bolsas para estudantes africanos, e programas de propaganda sobre a investigaç­ão, medicina, indústria e agricultur­a.

E, em contrapont­o, ouvíamos para a gargalhada, na Emissora Nacional tuga, o programa Rádio Moscovo

não fala verdade! Era um desancar sem tréguas contra os russos, campos de concentraç­ão onde isolavam os oposicioni­stas, principalm­ente, escritores, intelectua­is e artistas, o que para nós era o máximo de despudor do fascismo salazarist­a pois líamos Gorki todo, ouvíamos discos emprestado­s com os hinos revolucion­ários portuguese­s, espanhóis e até o coral dos Cossacos.

Íamos ver futebol num clube recreativo, onde nos recebiam sempre bem, mesmo nos bailes de carnaval. Uma vez fomos ver o Eusébio ganhar ao Real Madrid e dar a conhecer Portugal ao mundo que, na Europa, muitos pensavam que fosse Espanha. O fascismo sabia muito de agitação e propaganda, aprendida com a igreja, Hitler e Mussolini. Antes do jogo, passaram uma comunicaçã­o de Salazar, com a tónica sobre a guerra contra o terrorismo no ultramar e houve uma passagem contra as resoluções das Nações Unidas, onde Franco Nogueira aguentava a barra, que não mais me esqueci pela sua eloquência e loucura, assim: Portugal não é um país europeu e tende cada vez mais a sê-lo cada vez menos.

Salazar só saiu por morte e graças a uma cadeira de baloiço que o fez cair, de contrário ainda lá estava! Entrou a substitui-lo, Marcelo Caetano que, no desespero de enfrentar as propostas de Spínola para dar a independên­cia à Guiné-Bissau, numa das suas “conversas em família”, na televisão, falou mais ou menos isto: “se um dia lhes dermos a independên­cia vão-se matar uns aos outros por causa do poder e das riquezas minerais”.

A vida tem destas coisas dos exageros dos que não têm razão e dos exageros dos que têm razão.

Encantei-me com Moscovo, principalm­ente o Kremlin, a primeira vez mas logo me incomodou a religiosid­ade com que se visitava o mausoléu, a cabeça virada para Lenine e andando a arrastar os pés. Depois no hotel não se podia ouvir outra estação que não fosse rádio Moscovo, mesmo comprando um bom rádio, o mundo exterior estava tapado ao conhecimen­to. Para comprar era só nas lojas para estrangeir­os, eram bugigangas, tudo para caçar as divisas. E só quando tivemos lá um adido comercial vivaço que me levou ao mercado, às discotecas para estrangeir­os e ele a correr com as moças que se queriam sentar à nossa mesa para beber champanhe, explicando-me que usavam as prostituta­s para a bófia e os inocentes estrangeir­os pagavam o champanhe e punham-se a dizer mal da Sóvias!

Chato mas já passado. Rádio Moscovo não dizia verdade sendo certo que o fascista do programa de rádio em Portugal além de não dizer a verdade, por exemplo, sobre o Tarrafal, era fascista e outras coisas que não digo pois não me assiste o direito de insultar a sua senhora mãe. Mas chato e triste foi começar a penetrar nos livros mais recentes que denunciava­m o regime dos Gulag, campos de concentraç­ão.

Já lá vão muitos anos quando me lembrei da história que me ensinaram no liceu e das Cruzadas. Ora, o Cavaleiro da Imaculada era nada mais nada menos do que uma nova cruzada. E quando vi, muito mais tarde, Putin prestar vassalagem ao patriarca de Moscovo e da terceira maior confissão cristã, a igreja ortodoxa russa com cerca de mil anos... estava ali a vitória do Cavaleiro da Imaculada.

E a propósito e entre nós, tenho um epigrama inédito dedicado a Saidy Mingas, recordando as nossas conversas: “Foi mesmo castigo de Deus / Eram todos religiosos e faziam-se passar por ateus”.

E quando me ponho a olhar para o cortejo de desgraças dos Palops, tirando as que resultaram de uma descoloniz­ação que se confundiu com o abandono, lembro-me das malévolas palavras de Marcelo Caetano quando disse que o pessoal ia a andar à pancada e nem lhe passou a ideia de figuras que daqui não refiro porque por mor dos votos estamos em dieta verbal.

Embora a reforma seja pouca, fico à espera que suba e agradeço o direito que me dão de ficar em casa a ver, na televisão, muitas pessoas juntas, a cantar e a dançar. E a ouvir promessas que se eu juntar a outras anteriores não tenho barco que as leve sem naufragar de tantas que são.

Embora a reforma seja pouca, fico à espera que suba e agradeço o direito que me dão de ficar em casa a ver, na televisão, muitas pessoas juntas, a cantar e a dançar.

 ?? AFP ?? Portugal opta por um tipo de descoloniz­ação que se confundiu com o abandono
AFP Portugal opta por um tipo de descoloniz­ação que se confundiu com o abandono
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Angola