Parabéns Sporinguê debilitado mas vivo
O grito dos deserdados desceu as barrocas – que começavam na Cidade Alta, e acabavam na estrada asfaltada que as separava do dos Coqueiros
Os clubes desportivos nascem com nome próprio, mas, como as pessoas, muitos deles têm alcunhas, pseudónimos, que carregam até ao fim da vida.
Com o Sporting Clube de Luanda, prestes a completar 97 anos, nascido na actual Rua Rainha Njinga, morador na Cidade Alta, antes de descer para os Coqueiros - zonas, todas elas nobres de cidade de ontem e hoje - aconteceu isso. Apesar do sangue pequeno-burguês, que sempre lhe correu nas veias, foram os deserdados da sorte – os mais sinceros e acérrimos adeptos que jamais teve – a escolherem-lhe a alcunha, pseudónimo, cognome, seja lá o que for que lhe queiram chamar. Sem votação em assembleia-geral, sequer consulta a órgãos directivos, quanto mais autorizações! A decisão foi grito – inconsciente, talvez ingénuo – de liberdade em tempo de silêncios e medos. Urro uníssono de leões feridos na dignidade. A quem destinaram, desde cedo, domesticadores para os transformarem cordeiros, “servos de senhores”. Que vivem para serem degolados, oferecidos a deuses. Devorados em jantares de endinheirados, orgias, rituais de magias negras.
O grito dos deserdados desceu as barrocas – que começavam na Cidade Alta, rente à então sede do Sporting de Luanda, e acabavam na estrada asfaltada que as separava do Estádio dos Coqueiros, com piso ainda de terra batida, com uma bancada apenas – e espalhou-se pela cidade: Sporinguê!
Os futebolistas de camisolas verde e brancas sentiam-no como incentivo de gente com alma. De pessoas que os apoiavam desinteressadamente. Muitas delas acompanhavam-nos em passo de corrida atrás da carrinha que os transportava da sede para o campo. Depois, os deserdados em festa subiam as barrocas. Sempre a gritar Sporinguê!
Das barrocas, os deserdados gritavam os nomes de todos os jogadores, únicos ídolos que tinham, lhes ofereciam singulares alegrias capazes de lhes fazerem esquecer tristezas, noites sem fogueira, saudades da família, do rio, paus de fruta de subir à vontade. E vibravam com as fintas do Serra Coelho, o Lhélhé, os passes medidos a palmo do Carlos Silva, a defesa de vários dos guarda-redes, o golo da vitória, do “beateiro” Pires. Neste caso, os aplausos redobravam juntamente com as gargalhadas, se fosse em fora-de-jogo – daí a alcunha –, que representava fintar a legalidade então instituída.
O “grito de guerra” depressa foi adoptado por outros deserdados – os que conseguiam entrar para a geral, entre a bancada e o peão, com sacrifício do bolso ou a iludir vigilância policial –, mas também por outros adeptos. Principalmente adolescentes. Porventura cativados pelo hino “Sporinguê! Sporinguê!” ao ritmo sincopado das palmas.
O Sporting Clube de Luanda viveu momentos de enormes alegrias na concretização do sonho de quem o fundou. Conquistou títulos, encheu prateleiras de troféus. Passou a ter mais modalidades. Qualquer delas arrecadou vitórias, ajudou a construir o edifício da fama com proveito. Mas, também teve momentos menos bons, como a descida de divisão da equipa de futebol. Até mudou de nome. Retomou o de baptismo. Pior de tudo, adoeceu gravemente. As instalações degradaram-se. Chegou a temer-se o pior, o fim, o enterro. No anonimato, longe das honras de outros tempos. Como o rei da selva, que tem na bandeira como emblema.
O Sporting Clube de Luanda continua debilitado, mas vivo. Por isso, não se admirem se um dia destes ouvirem por toda Luanda gritar: “Sporinguê! Sporinguê!”.
DESTACADO - Os luandenses mais velhos sabem o que significa “Sporinguê”. Aos mais novos, refiro ser cognome dado ao Sporting Clube de Luanda, no tempo em que o Estádio dos Coqueiros tinha campo pelado e apenas uma bancada. A palavra era o grito de incentivo nascido nas barrocas.