A galinha da minha velha mãe
Já tive muitos animais considerados de estimação. Cães e gatos, como é óbvio, peixes de aquário, mas também cacussos num tanque que deixou de servir de reservatório de água. Acabaram todos mortos com uma dose de cloro administrada por um desastrado rapaz cheio de boas intenções, pássaros vários, piriquitos e papagaios. Lembro-me que, no Nzeto, chegámos a ter um jacaré num tanque cercado com rede de galinheiro – quando atingiu determinado tamanho, rasgou a rede com as mandíbolas e desapareceu. Na Ilha do Cabo tive o Kiko, um macaco que surrupiava cervejas das mãos das pessoas e emborcava-as. Depois, eram macacadas a tarde toda.
Mantenho esse apego pelos animais, consciente de que para algumas pessoas isso pode significar, mais do que uma perda de fé nos humanos, um sinal de desatino, alguma porca mal apertada na engrenagem cerebral. Quem sabe? De todos os animais de estimação que tive, o predilecto foi a galinha Mafalda. Já veio um tanto velha, descartada de algum aviário após cumprir o tempo de poedeira. Esteve comigo mais de cinco anos.
O que surpreendia na Mafalda era a capacidade de comunicação. As mudanças de tom e na forma no cacarejar, segundo o momento e o objectivo que teria no seu pequeno cérebro galináceo. A verdade é que respondia sempre que chamasse por ela. Até de noite. A minha Mafalda não era uma galinha qualquer para acabar numa moamba ou cabidela. Para mim, ela era muito boa pessoa. Morreu de morte morrida e teve direito a sepultamento condigno.
Houve também a Jurema, exemplar no cumprimento do seu papel de galinha caseira: pôr ovos. De tal modo que se revelou um bom investimento. Mas aí é que veio ao de cima a afinidade que tinha com a Velha Guilhermina. Embora andasse livre pelo quintal, a Jurema não punha os ovos em qualquer sítio, muito menos arranjava um esconderijo, como fazem as outras galinhas. Quando chegasse a hora de pôr, ela fazia-se comunicar com a dona.
A cena era um verdadeiro espectáculo. A Velha Guilhermina a lavar a loiça e a galinha a andar à volta dela, a cacarejar. “Espera um pouco que já vou!” – respondia-lhe a minha mãe. – Estás aflita, não é?” Quem visse, decerto que poria em dúvida a saúde mental da velhota. Uma vez, o Manuel Dionísio perguntou-me intrigado: “A mãe fala com a galinha?!” Espera um minuto, que já vez o que acontece – respondilhe, só para aumentar o suspense.
Então, a Velha lá abandonou os afazeres, pegou num pedaço de pano que estava em cima do tanque de lavar roupa e dirigiu-se a um banco corrido de madeira que tinhamos no quintal. Colocou aí o farrapo, em forma de ninho, e disse para a ganlinha: “Pronto, Jurema, o teu lugar já está feito”. Dito isto, a galinha saltou para o banco e aconchegou-se em cima do ninho improvisado. Minutos depois, soltou um cacarejo diferente, a anunciar ao mundo a postura de mais um ovo.
O momento de singular intimidade entre um ser humano e uma galinha foi comparado pelo Manuel Dionísio ao feito de Cristóvão Colombo, que se diz ter sido o primeiro homem a pôr um ovo em pé.
A Velha Guilhermina a lavar a loiça e a galinha a andar à volta dela, a cacarejar. “Espera um pouco que já vou!” – respondia-lhe a minha mãe. – Estás aflita, não é?”