A demografia de Massimo Bacci e o genocídio no Yemen
Na Idade do Bronze éramos, povoando a Terra, 100 milhões. No curso da Revolução Industrial chegámos aos 1.000 milhões. E há quem vaticine que no fecho das contas demográficas deste século XXI a população mundial se traduzirá em, pelo menos, 10.000 milhões de almas. Este último balanço é-nos proposto pelo especialista italiano Massimo Livi Bacci, professor de demografia na universidade de Florença. A atenção às espirais demográficas constará, por certo, das preocupações dos governantes de todo o planeta. Tanto como das nossas – em questões como as já provadas mudanças climáticas, os alimentos e os serviços nacionais de saúde. Em Março deste 2017, a actividade comercial gravitou em 22 por cento da população mundial.
Os ritmos da vitalidade planetária suscitam, todavia, um sem número de perplexidades. As minhas (perplexidades) projectam-se a partir da postura contemplativa do demógrafo que antes referi, Massimo Bacci, integrista da numerologia. Retiro esta conclusão da leitura do seu livro fundamental, “História Mínima da População Mundial”. Sustenta o prof. Livi Bacci que “durante milénios o crescimento numérico da humanidade produziu-se em relativa harmonia com o crescimento dos recursos”.(Muitos destes recursos ficaram a dever-se à escravatura e ao feudalismo). Os números – da demografia ou da economia – são naturezas inexplícitas e enganosas quando se dispensam de interpretações do domínio da história, da política e da sociologia. Massimo Bacci, em estado permanente de deslumbramento e rendição à “pulcritude” dos números, oferecenos, por exemplo, esta sua visão do espaço e estratégias do crescimento demográfico: “Em toda a história da humanidade, população foi sempre sinónimo de prosperidade, estabilidade e segurança. Cortés não reprimiu a sua admiração quando, ao aproximar-se do Vale do México, viu os lagos repletos de povoações e sulcados de canoas, e a grande Tenochtitlán (a capital mexicana) com o seu mercado e uma praça (o Zócalo) tão grande como a cidade de Salamanca e invadida, todos os dias, por mais de 60 mil almas que compram e vendem toda a sorte de mercadorias”. (Hernan Cortés, o invasor hispânico do México, não só destruiu a capital, Tenochtitlán, a então chamada “cidade de prata”, como chacinou milhares de resistentes aztecas).
Ao optimismo aritmético do prof. Massimo Bacci (10.000 milhões de almas até ao termo deste século XXI) opõem-se variáveis contundentes da vida e da morte. A Síria, vítima de terrorismos directos e transversais, ou camuflados, só poderá reerguer-se das ruínas se dispuser de 200 mil milhões de dólares. Algo que não estará nunca ao alcance do regime de Damasco. Esses 200 mil milhões de dólares existem, de facto, nas arcas petromonárquicas da Arábia Saudita, que se dedica à destruição e ao genocídio no indefeso Yemen. Grande mistério (?) rodeia esta mal designada “guerra do Yemen”. (Outra invenção do “progresso”na geografia regional é a “guerra do Iraque” – por agora mais de 1 milhão de mortos “colaterais”para a contabilidade demográfica do prof. Massimo Bacci). Em Maio de 2011, os drones norte-americanos do Comando Conjunto de Operações Especiais falharam a pontaria, na capital do Yemen, quando da tentativa de assassinato de Anuaral-Aulaqui, líder yemenita. Tratou-se da então designada “Primavera dos drones”. As agressões – da mesma autoria – recrudesceriam em 2012. O Yemen foi devassado por cerca de 50 ataques com drones e com mísseis a partir da aviação de combate: cerca de 500 mortos, civis incluídos. (O país está agora a contas com 1 milhão e 400 mil casos de cólera e o número de vítimas mortais dos bombardeamentos “aliados” não cessa de aumentar).
Às dificuldades de destrinça no maciço político-tribal-religioso que é o desgraçado Yemen junta-se – opinião do historiador Eric Hobsbawn – “a puerilidade de fundo característica da implicação norte-americana no Médio Oriente, em especial na desastrosa guerra do Iraque”. Mais elucidativa dessa “puerilidade” é a narrativa, sobre o Yemen, de três investigadores espanhóis das universidades autónomas de Barcelona e Madrid: Leyla Hamad Zahonero, Francisco Veiga e Ignacio Gutiérrez de Terán, divulgadores da assertiva proferida, antes de morrer em 2012, pelo activista da campanha antidrones Ibrahim Mothana: “As tribos yemenitas são, em geral, bastante pragmáticas, e não são por definição uma forma de refúgio seguro para os grupos radicais religiosos (Al Qaeda). No entanto, o incremento das vítimas civis nos ataques com drones está convertendo em ira a apatia de algumas facções tribais”.
Nesta conjuntura, destaquemos o genocídio em curso, impeditivo de que antes de decorridos muitos decénios se materialize a reedificação nacional. Atraem-nos alguns vértices da trajectória política do país, um “laboratório” no qual já investiram ou investem, ainda, a Arábia Saudita, o Egipto, o Irão, o Iraque, o Qatar...Digno de uma especial reflexão é o período de 1970-1978, quando o Yemen foi governado pelo “visionário” Abdulrahmánal-Iryani, o único presidente civil. A ele ficou o Yemen a dever um gigantesco esforço de reconciliação nacional, mau grado a longevidade das diferenças entre zaydíes e chafiíes, tão profundas quanto as da dicotomia xiitas-sunitas incitada pela política externa dos Estados Unidos desde as atribulações da guerra Irão-Iraque. A Arábia Saudita de maioria sunita utiliza como os norte-americanoso argumento da Al Qaeda residual, no Yemen, para atear o fogaréu genocida. Contudo, além das motivações hegemónicas muito próprias da sua musculação armamentista, a maior potência do Golfo é movida também por razões tribais de longa duração, dada a variedade tentacular do entrançado etnocultural na região.
A História lembra-nos que Adén, capital do Yemen ocupado outrora pelos ingleses, chegou a ser o maior porto colonial do mundo. O colonialismo sempre foi mola axial dos conflitos tribais (“Dividir para reinar”) e os ressarcimentos são eterna letra morta: jamais o “Ocidente” procede à reinterpretação metódica da História. O Yemen continua a pagar essa hedionda factura, a do olvido... Magistral, oprovérbio árabe: “O que não te ensina o tempo ensina-to o Yemen”.
Ao optimismo aritmético do prof. Massimo Bacci (10.000 milhões de almas até ao termo deste século XXI) opõem-se variáveis contundentes da vida e da morte