Filho da Lixeira
Há dias voltei à zona da Lixeira, no Sambizanga. Segundo a minha mãe, nasci na Lixeira por mero acaso e de lá parti ainda pequeno para o Cazenga, bairro da minha infância de onde sai já crescido para ganhar o mundo.
Por culpa de um filho do Sambizanga, lá fui ver um dos locais turísticos das crianças do meu tempo. Naquela altura, não eram muitos. Tínhamos a Ilha de Luanda, a Moraia e a Lixeira. Para os adultos, era um espaço de despejo dos resíduos de Luanda.
Mas para as crianças do meu tempo, a Lixeira, que era um dos símbolos do Sambizanga, era uma espécie de prolongamento do Jumbo, dos Nzambas e de outros grandes espaços comerciais daquele tempo.
A nossa Lixeira, que depois deu nome ao bairro, não tinha cheiro de coisa podre. Era um espaço livre, onde o sonho de uma criança estava sempre aí, ao pé, no cruzar de um camião. Cada vez que chegava um camião com a sua carga, nascia uma nova esperança de encontrar uma relíquia.
Podia ser uma folha de jornal encardida com a foto do nosso Brinca na Areia em grande estilo, o cartaz do filme Sandokan o Tigre da Malásia ou o Trinitá Cowboy Insolente.
Num dos dias mais proveitosos, para inveja dos meus amigos, consegui uma boneca zarolho, que ofereci à minha irmã Belita, e um quadro de uma bicicleta Caloy. Não tinha pneu nem corrente, mas tinha o banco intacto e o volante. De forma que, todos os dias, depois da escola, no Colégio Nova Luz (antiga 126), lá estava eu na minha máquina, amparado pela mandioqueira, a dar a volta a Angola.
A Lixeira era também uma fonte de solidariedade. Até o homem da máquina só destruía o que já não precisávamos mais. A natureza foi tão generosa para as crianças do meu tempo. Os que tinham a mais iam depositar o que já não precisavam e os que não tinham nada iam à Lixeira buscar aquilo que fazia falta. E criava-se, entre o meio e o homem um amor, uma fraternidade que o sol abrasador do meio dia, a lua ou a chuva ajudam a cimentar, a perpetuar. Afinal, a nossa Lixeira tinha alma.
Hoje a lixeira já não existe. Ficou apenas o nome do bairro. Aquele espaço aberto ganhou ar de metrópole e deu lugar a estradas modernas, para ajudar no progresso. Verdade que nem me apercebi desta transfiguração.
Disseram-me que foi graças ao empenho de um meu conterrâneo, que decidiu transformar o Sambizanga nas suas múltiplas vertentes, e levar o projecto como exemplo multiplicar para outras áreas. Quem contou assegurou, e concordo, que isso faz com que seja possível a transformação de Angola, com os seus recursos e seus filhos.
Falou também de outras coisas, como o afecto profundo deste meu conterrâneo do bairro “onde nasceu, cresceu e de onde partiu para se juntar aos patriotas que lutavam pela Independência de Angola” e do empenho na “materialização dos diferentes programas de recuperação de infra-estruturas que ajudaram e vão continuar a ajudar a catapultar o desenvolvimento do país”.
Projectos semelhantes estão a surgir no Cazenga e um pouco por todo o lado. É certo que sem a alma da Lixeira das crianças do meu tempo. Mas, reconhecidamente, aproximar as pessoas por meio de estradas modernas, saneamento básico, saúde e habitação segura é um bom legado para as futuras gerações.
Hoje a Lixeira já não existe. Ficou apenas o nome do bairro. Aquele espaço aberto ganhou ar de metrópole e deu lugar a estradas modernas, para ajudar no progresso. Verdade que nem me apercebi desta transfiguração