Um bairro pobre pintado de fresco para enganar o Papa
Gabriel Garcia Márquez gostava de Cartagena das Indias, na sua Colômbia natal. Os turistas, espécie revitalizada, também gostam de Cartagena das Indias. Numa iniciativa nimbada do maior dos ridículos, os sátrapas da Conquista que dominam a Colômbia decidiram em 1991 oficializar a designação de “Distrito Turístico e Cultural de Cartagena das Indias”. Ideia que estimula a admissibilidade de um “Distrito Turístico e Cultural do Rio de Janeiro”, exRio de Janeiro, entre outros destinos mundiais atoleimados ou susceptíveis de cederem à luxúria daasneira. O Papa Francisco, que acaba de visitar a Colômbia, não poderia deixar de ir, ou de ser coagido a ir, também, a Cartagena das Indias. Enfim, o presidente colombiano, enroupado na lustrosa fatiota mágica de um Nobel da Paz estrambótico,“queria” o Papa Francisco em Cartagena das Indias. Terá sido uma forma artificiosa de lamber as feridas da visita papal a Medellín, teatro de variadíssimas carnificinas e despautérios. À terrível Medellín associamos a maior parte dos crimes hediondos cometidos, desde há mais de duas décadas, em duas frentes: a do narcotráfico, falso argumento da maciça presença militar norte-americana na Colômbia, e a espantosa devastação humana cometida pelo terrorismo de Estado na época de Álvaro Uribe-Exército incluído pelos paramilitares, pelas forças policiais e por “jagunços” recrutados por grandes caciques e terratenentes do mundo rural. O Papa Francisco chegou à Colômbia conhecedor de todo esta ignomínia. Ciente, em particular, de um facto bastante contraditório: ao longo dos anos, as únicas obras sociais erguidas em Medellín ficaram a dever-se ao “capo” do narcotráfico Pablo Escobar, líder do famoso “Cártel” com o nome da populosa cidade. Acontece que Escobar não cometeu sequer metade dos assassinatos levados a cabo pela máquina do ex-presidente Álvaro Uribe. Na quietude do seu pequeno reduto no Vaticano, em Roma, o Papa Francisco terá sazonado com sábia paciência o perfil verbal das alocuções públicas a proferir em Bogotá, em Medellín, em Cartagena das Indias - uma agenda a pedir muito das suas capacidades psicossomáticas. Regra geral, os bons sentimentos nem sempre servem as boas causas. Desta feita, porém, o Papa fez dos bons sentimentos que o animavam nesta visita oficial um eficaz serviço às boas causas. Estudioso aplicado de cada “dossiê” das suas peregrinações, o Papa Francisco, pragmático como não costumam sê-lo os sacerdotes da Teologia da Libertação, muito terá recordado dois colombianos portadores de nomes quase gêmeos: Camilo Torres Tenorio e Camilo Torres Restrepo. Ambos pagaram com a própria vida a ousadia de seus ideais libertários. Camilo Torres Tenorio é mais antigo: morreu em 1816. Tenorio batia-se por maior autonomia ou mesmo a independência da Colômbia ocupada pelos castelhanos. No fundo, ele era um moderado que se contentaria com uma solução “autonómica”, à maneira da Espanha actual. De pouco lhe valeria tal moderação. A coroa de Castela não lhe perdoava a iniciativa da tradução, do francês para o castelhano, dos Direitos do Homem e do Cidadão, até ali desconhecidos na Colômbia de 1810. E aconteceu a barbárie, tão experimentada pelos cubanos durante a ocupação espanhola. Depois do fuzilamento, em Bogotá, na madrugada de 5 de Outubro de 1816, o corpo de Camilo Torres Tenorio foi selvaticamente esquartejado, braços e pernas espalhados pelas quatro entradas da capital, e a cabeça espetada numa lança e exibida no rossio da cidade. Diferentes seriam, nos anos de 1960, a ideologia e a trajectória do “outro” Camilo Torres (Restrepo). Sacerdote vinculado à Teologia da Libertação, Camilo Torres Restrepo ajudou a criar, na Universidade Nacional da Colômbia, a Faculdade de Sociologia _ sinal da atenção veemente que ele consagrava, desde a sua adolescência, às desigualdades sociais e aos três grupos étnicos tão maltratados no passado e no presente: os indígenas, os afrocolombianos e os ciganos (comunidade Rom).Expulso da Universidade, onde ensinava, Camilo Torres acercou-se, então, de posições revolucionárias. Em 1965 ingressou na guerrilha do Exército de Libertação (ELN). E morreu, logo no ano seguinte, naquele que seria o seu primeiro e único enfrentamento com o exército colombiano. O Papa Francisco, ao chegar a Cartagena das Indias teria bem presente, também, na memória, a odisseia ali vivida, em 1968, por quatro sacerdotes espanhóis, Gregório Pérez, Domingo Laín, Carmelo Gracia e José António Jiménez. Eles denunciaram as tremendas desigualdades sociais em Cartagena das Indias e actuaram nos bairros pobríssimos de Olaya e Chambacu. Expulsos da Colômbia, três dos sacerdotes reentraram no país, em 1969, de forma clandestina, e ingressaram nas filas guerrilheiras do mesmíssimo ELN… O Papa Francisco, em Cartagena das Indias, etapa final do seu périplo colombiano, pôde perceber a razão das “precipitações”, improvisos e desconchavos da organização do evento: distraí-lo por meio de um infindável cortejo de cumprimentos de ministros e respectivas consortes, todo um carrocel aristocrata-burguês de sorrisos e vénias.(Com o povo escondido, o do bairro miserável de Chambacu, cujas paredes _ denúncia de uma pobre mulher aos microfones da Telesul … haviam sido pintadas de fresco apenas umas horas antes). O motorista do chamado Papamóvel, sempre a uma velocidade imprópria e perigosa para evitar o “contágio” popular - a dado momento permitiu-se uma travagem súbita que deu lugar a um ferimento e equimoses no rosto do mais alto magistrado da Igreja católica. Nas calmas, imperturbável, o Papa Francisco suportou a pesada “cumprimentação” da descendência dos esquartejadores de Camilo Torres Tenorio e proferiu as verdades das verdades: “Não basta a missa, a reza, pensar que se cumpriu e assim se chegou à Salvação. É preciso não temer nem recusar o Encontro, importa a aproximação, tocar no pobre, mudanças estruturais para uma verdadeira pacificação”. De facto, 144 mortos depois da assinatura dos “acordos de paz”, gente expulsa das alcatifas dos “Distritos Culturais e Turísticos”, dá que pensar. Onde quer que estejam, Camilo Tenorio, Camilo Restrepo, Gregório Pérez, agradecem.
Desta feita, porém, o Papa fez dos bons sentimentos que o animavam nesta visita oficial um eficaz serviço às boas causas. Estudioso aplicado de cada “dossiê” das suas peregrinações