Jornal de Angola

Nós, os pioneiros

- Cândido Bessa

PESSOAS & COISAS Era uma sexta-feira normal. Estou a caminho do serviço, para mais uma jornada laboral, quando, no Largo das Escolas, um jovem dirige-se apressado em minha direcção. “Tio bom dia! Por favor, pode dizer-me que horas são?” Olho com atenção para aquela figura magra. A camisa às riscas parece de alguém do dobro do seu tamanho e não combina nada com a calça suja e extremamen­te apertada, a realçar ainda mais as pernas magras. Os ténis também parecem maiores, para a sua estatura.

A primeira imagem que me vem em mente é de um larápio, talvez integrante de um destes grupos de miúdos que se aproveitam de qualquer oportunida­de para fazer mais uma vítima. Cheio de receio, lanço um olhar a volta e confirmo que ele está sozinho. Parece pouco à-vontade. O olhar é tímido. Os dedos magros agarram com firmeza uma capa plástica de onde se vislumbram alguns cadernos e um pano branco, quase amarelado. Outra me chama atenção: a correcção ao falar. Digolhe que são 10h43. De repente, o jovem precipita-se para ir embora, tem pressa. Me agradece, e atravessa a estrada a correr. Por via das dúvidas, fico mais algum tempo a contemplar aquela figura que se movimenta com rapidez e elegância. Ao longe, vejo a tirar o pedaço de tecido entre a capa plástica. Era uma bata. E desaparece entre a multidão de alunos.

Numa sociedade em que até crianças aparecem com telefones de último grito, tive pena daquele rapaz, que no meio de muitas dificuldad­es tem pressa de ir a escola, de aprender, ainda que tudo em volta parece hostil. Tenho pena de não o ter perguntado sequer o nome. Em véspera de comemorarm­os mais um 17 de Setembro, o encontro com aquele rapaz, fez-me lembrar o encontro que tive com Agostinho Neto. Se a memória não me atraiçoa, foi nas celebraçõe­s do 4 de Fevereiro de 1979. Ou 1978? Não importa. Mas foi num daqueles anos. Um grupo de pioneiros, no Cazenga, aguarda a chegada de um camarada muito especial. Antes, na escola, no Patrício, recebemos o fardamento: a camisola azul ciano e o calção igualmente azul, mas carregado. Cada recebe também dois saquinhos de bang bang (um cereal feito a base de milho).

De repente, um helicópter­o precipita-se sobre a pista improvisad­a no campo dos Bairros Unidos, por detrás do Tanque de água do Cazenga. Quando a porta se abre, o seu principal passageiro: o Presidente Agostinho Neto. O momento é mágico. Somos nós, os pioneiros a fazer o cordão principal ao Presidente. Mas primeiro, a saudação, a continênci­a: “Pioneiros de Agostinho Neto na construção do socialismo tudo pelo povo”. E Neto saúda os pioneiros, primeiro, e depois a multidão que o aguarda. Faz uma festinha ao colega da frente e agradece “boa tarde, pioneiros! Os pioneiros têm de estudar, para no futuro serem bons camaradas!”

O percurso de quase 300 metros para o local onde vai discursar, no campo adjacente ao antigo quartel da ODP (Organizaçã­o da Defesa Popular), é feito a pé, ladeado pelo grupo de pioneiros. Neto fala com os elementos da sua comitiva, mas sem perder de vista os pioneiros. Foi a primeira e única vez que estive bem perto do Fundador da Nação. Era pequeno, mas não me esqueço nunca daquelas palavras: “Os pioneiros têm de estudar, para no futuro serem bons camaradas!” Ele gostava de rodear-se de crianças, ou melhor, gostava dos pioneiros.

Lembro-me de tudo isso agora, neste mês do Fundador da Nação, e numa altura em que o país se prepara para mudar de Presidente. José Eduardo dos Santos, que recebeu o testemunho de Neto, passa o bastão a João Lourenço para continuar a corrida. A minha filha Yanny, de cinco anos, ao ver a bandeira do MPLA, dirigiu-se para mim nestes termos: “Papa, me traz só uma bandeira do João Lourenço!” Um colega contou-me uma conversa que teve com a filha menor, à saída da Escola, em que a pequena teimava em dizer que o vencedor das eleições foi João Lourenço e não o MPLA. “Mas como é que estão a dizer que é o João Lourenço que ganhou?”, questionou a menina de seis anos, radiante. Não é que ela não gostasse do MPLA.

Mas para aquelas crianças, para aquele jovem do Largo das Escolas, João Lourenço personific­a a esperança no seu mundo.

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