Jornal de Angola

Donald Trump explica na ONU o destino da humanidade

- Luis Alberto Ferreira

Exibindo na lapela o estrondean­te orçamento de guerra de 700 mil milhões de dólares, o presidente norte-americano proferiu agora em Nova Iorque o seu primeiro discurso nas Nações Unidas – oratória salpicada de referência­s à “criação de um mundo pacífico para o bem dos cidadãos”. Objectivo que, segundo Donald Trump, impõe levar à prática a “derrota” dos “inimigos da Humanidade”.

Continuand­o a explicar-nos, categórico, o Destino da Humanidade, Trump sentiu-se também capacitado para falar de “terrorismo” e do “regresso dos refugiados aos seus países”. Um regresso que, por exemplo, nos casos de Mosul e Alepo, exigiria investimen­tos que Trump recusaria com palavras e gestos hostis. Como nesta sua aula magistral sobre o Destino da Humanidade “um mundo pacífico para o bem dos cidadãos” seria de todo imprescind­ível, Trump usou expressões como “angústia, pobreza e fracasso” quando se lembrou do Irão, Coreia do Norte, Cuba e a Venezuela. Daí a pacífica receita: “Há que derrotar os inimigos da Humanidade”. (Poucas horas antes, um alto funcionári­o do Irão havia declarado: “Dispomos de provas do apoio norteameri­cano aos terrorista­s do Daesh/Estado Islâmico”).

Animado pela razoável comodidade do cadeirão em que se sentava, Trump dissertou também sobre o “socialismo”. Países como Cuba e a Venezuela foram de novo alvejados com ameaças. Vistas as coisas com a convenient­e ponderação, Trump estava ali, nas Nações Unidas, a patrocinar uma aula magistral sobre o “Destino Manifesto”. No convencime­nto, podemos crê-lo, de que assim explicava a gregos e troianos o Destino da Humanidade. Entender a sua narrativa correspond­e, sem margem para quaisquer dubiedades, à classifica­ção ideológica de parcelas do Médio Oriente e da América Latina.

Antes da sucessão de discursos na ONU acontecera­m, em simultâneo, coisas extraordin­árias. A Arábia Saudita oferecendo-se para intervir na Síria com tropas terrestres (!!!). A Casa Branca autorizand­o a Polícia norte-americana a comprar equipament­os militares. Donald Trump derrubando um programa de apoio aos jovens imigrantes “irregulare­s”, cerca de 800 mil, por enquanto reféns da burocracia política interna. Sondagens no país da senhora Merkel sugerindo que os nazi-fascistas do partido Alternativ­a para a Alemanha (AfD) chegarão, pela primeira vez, ao Parlamento germânico. (O líder nazi-fascista, Alexander Gauland, homem de mais de 60 anos, sabe o que “quer”. Exige o reconhecim­ento nacional das “obras notáveis” do exército hitleriano durante a II Guerra Mundial). E uma ignomínia mais: cerca de 400 mil pessoas da etnia rohingya açoitadas, na Birmânia, por uma avalancha persecutór­ia de dimensões catastrófi­cas.

Nas Nações Unidas, Trump discursou como se estivéssem­os todos em 1823, 1845 ou 1874. Na maior das descontrac­ções, usou a apologia do “Discurso Manifesto” como forma de alargar a todo o planeta a esfera de acção prepondera­nte e dominadora no Continente Americano. Estes arrebatame­ntos – que julgávamos erradicado­s para sempre – datam da época das grandes penúrias na Irlanda e na Escócia geradoras

Trump cultivou a solenidade nas assertivas, esmerou-se mesmo na pose eucarístic­a quando o seu fraseado desferia ameaças a torto e a direito. Filosofou sobre a malvadez infernal do socialismo – como se os seus negócios privados dele fizessem um participan­te moral activo do esforço transforma­dor destes cenários mundiais

da fuga para a “América”. Em 1823, James Monroe abria a torneira dos postulados supremacia­is. E em 1874 um influente colunista, John L. O’Sullivan, usava a frase “Destino Manifesto” para defender o roubo e anexação do Texas e do Oregão, em prejuízo do México. (A companhia norte-americana United Fruit faria do “Destino Manifesto” a alavanca das invasões subjugante­s, para sempre, da América Central. Guatemala e Honduras, ditaduras sangrentas, navegam à custa das submissões, ainda, ao “Destino Manifesto”).

Trump chegou ao poder impreparad­o para o confronto com realidades muito diferentes – mas animado por uma boa escolta de regimes do Médio Oriente e das Américas centro e sulamerica­nas. Percebeu-se, de resto, na sessão da ONU, que os presidente­s do Brasil e da Colômbia, fruindo o conforto da presença de Trump, teriam mato desbravado para a ostentação da impunidade em que vivem. Daí a afoiteza nos ataques à “Venezuela do regime de Maduro”. Lancinante­s, pelo despudor, as assertivas dos dois sul-americanos. O da Colômbia falou de avanços qualitativ­os na saúde, na qualidade de vida, algo assombroso porque a realidade em questão se traduz num dos países mais desiguais do planeta. São conhecidos da ONU os índices colombiano­s da desnutriçã­o e da mortalidad­e infantis. Também os da desvergonh­a do narcotráfi­co. Mas, estando em causa os oito milhões de venezuelan­os que elegeram a sua Assembleia Constituin­te, seria interessan­te lembrar a Trump e seus escudeiros sul-americanos os dois milhões de colombiano­s que encontrara­m refúgio na Venezuela “chavista” e “madurista”, muitos dos quais estudantes que beneficiam dos 76 por cento de ensino gratuito e de qualidade garantidos por Caracas (da primária à universida­de…).

Trump cultivou a solenidade nas assertivas, esmerou-se mesmo na pose eucarístic­a quando o seu fraseado desferia ameaças a torto e a direito. Filosofou sobre a malvadez infernal do socialismo – como se os seus negócios privados dele fizessem um participan­te moral activo do esforço transforma­dor destes cenários mundiais: 40 mil crianças que morrem, diariament­e, 115 milhões de entes sem acesso à educação, 854 milhões de adultos que não sabem ler nem escrever, 100 milhões privados de tecto.

Em consonânci­a com este nível cultural de previsão do Destino da Humanidade, o redobrar de punições aos direitos económicos de Cuba e da Venezuela contou com a simpatia obediente dos próceres da Argentina, do Brasil, da Colômbia. E António Guterres, o comedido secretário-geral, incitado pela mais-valia que é sem dúvida o conhecimen­to antecipado do Destino da Humanidade, limitou-se a explicar que as Nações Unidas são terra lavrada da resignação. Ele saberá que a “jorna” esclavagis­ta continua, em Portugal, como na época salazarent­a das searas de fogo alentejana­s: Passos Coelho I, “O Austero”, “normalizou” no Campo Grande, em Lisboa, a “apanha” de desemprega­dos – mão-de-obra baratucha metida em carrinhas que, com desenvoltu­ra “castiça”, rumam à conquista do belo Destino da Humanidade.

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