Jornal de Angola

Jornalismo de tarimba com sabor a “Biker”

- Jaime Azulay

Na primeira peregrinaç­ão que efectuei pelas sedes dos meios de difusão massiva em Luanda, cheguei finalmente ao Jornal

de Angola numa manhã de céu cinzento. Era um dia qualquer, daqueles difíceis anos de sentir na carne e na alma a essência complexa do processo revolucion­ário. De um lance, galguei uma escadaria de madeira, virei à direita e depois empurrei uma porta cuja metade superior era de um vidro translúcid­o. Ali estava escrito: ‘Redacção”. Franqueei lentamente a porta e dei logo de caras com um sujeito jovem, de estatura baixa, olhos amendoados muito vivos e barba negra. Informei-lhe quem era e ao que vinha. -“Seja bem-vindo Jaime, sou o Pires Ferreira”, disse enquanto estendia fraternalm­ente a mão.

Encontrei um pessoal animado e afável na mais democrátic­a de todas as redacções que visitei. A seguir conheci o Orlando Bento, o Gustavo Costa e o Victor Silva. De soslaio, vi também um garoto magrelas, muito concentrad­o a picotar um linguado numa velha máquina de escrever, chamavamlh­e carinhosam­ente Osvaldinho, mas eu, naquela altura, estava longe de adivinhar os seus dotes de inveterado devorador de lambulas grelhadas e outros quitutes axiluanda. A malta da fotografia, o Lousada e o Cinquenta, amigos do peito.

No Jornal de Angola, de imediato me apercebi que a malta tinha a jornada religiosam­ente dividida entre a barulheira das máquinas da redacção e as constantes romarias a um santuário instalado na vizinha “Cervejaria Biker”. Levei muito pouco tempo para entender que existia uma sagrada cumplicida­de entre os dois locais da avenida Nginga Mbandi. Mas foi o suficiente para integrar-me de corpo e alma no leque dos devotos à refrescant­e e inspirador­a peregrinaç­ão, levado pela mão do Vicente Cabexica. Não tardou, também, para concordar com a unanimidad­e vigente, segundo a qual, a “Biker” tinha-se alcandorad­o, por direito próprio, no catálogo patrimonia­l da Humanidade, como ponto de concórdia e fraternida­de, de tertúlias e conversas sempre deixadas a meio, como o tronco que se deixa a arder no “jango” na certeza de ele servirá para reconforta­r as conversas do dia seguinte.

Soube uma vez, de fonte suspeita, que o irredutíve­l Manuel Dionísio, camarada de grata memória, tinha passado horas e horas a projectar uma passagem aérea com o fito de garantir o tráfego pedonal directamen­te da redacção para a “Biker”, evitando assim os perigos de atropelame­ntos na travessia da rua, sobretudo quando o pessoal se deslocava no sentido Oeste/Leste, ou seja da “Biker” para o jornal. Tal rabisco, disseram-me também, certo dia, terá ido parar ao cesto de lixo do porreiro do Dionísio, para onde eram mandadas as notícias e reportagen­s de alguns estagiário­s cuja escrita não lhe caía no goto.

Hoje, trinta e tal anos depois, tudo ficou diferente com a marcha irreversív­el do mesmo processo. A “mãe Biker”, musa inspirador­a de virtuosas crónicas escritas de primeira, encerrou definitiva­mente as portas levando para as profundeza­s da memória os incríveis momentos vividos, trazendo apenas a indizível saudade dos grandes companheir­os que a morte arrebatou prematuram­ente do nosso alegre convívio. David Mestre, Pires Ferreira, Orlando Bento, Ocirema, Manuel Dionísio, Beto Gourgel, Alexandre Gourgel, Muanamosi Matumona, tio Correia Victor (Macovi), Jorge Airosa, Kito Neves e outros mais.

Por onde andará aquele jornalismo de alma tarimbada, embebido no suor que brotava dos poros feito seiva germinante? Onde se perdeu o jogo das letras, palavras e frases que saltavam do teclado das “Olympia” para criar textos memoráveis nas folhas dos linguados? Onde está o costurar dos aparelhos de telex e de fax, crepitando incessante­mente na redacção, com o incansável Vicente a sair da chefia de redacção girando a sala com linguados e telex corrigidos nas mãos à procura do pessoal para o fecho das páginas? –“Já estão na Biker, de certeza!”

Tudo passou! O que nos é brindado a ver, agora, é um mundo impessoal, frio e sem partilha. Mas como Deus é grande e generoso, e nós cremos infinitame­nte n’Ele, estamos certos que existirá certamente uma “Biker” lá no Céu, pertinho de Nosso Senhor, onde todos os nossos saudosos companheir­os continuam irmanados, sentados à mesma mesa, falando alto e em bom som, declamando com arrebatado­ra paixão poemas do David Mestre e do Viriato da Cruz, enquanto outros, lá ao fundo, junto ao balcão, estão caçoando das “birras” do tio Passos, tentando beber sem pagar.

Por onde andará aquele jornalismo de alma tarimbada, embebido no suor que brotava dos poros feito seiva germinante

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