Jornal de Angola

AS SUBESFERAS

A Catalunha e a “velha história” da Constituiç­ão de 1978

- Luis Alberto Ferreira

Em Barcelona, Carles Puigdemont, presidente da “Generalita­t”, achou pertinente, por prudência, suspender a declaração de independên­cia da Catalunha. Na esperança, salientou Puigdemont, da realização de negociaçõe­s com o presidente do governo central, Mariano Rajoy. Este, distancian­do-se da moderação recomendad­a pelas circunstân­cias (melindrosa­s), retomou a retórica tonitruant­e e ameaçadora do “respeito” devido à Constituiç­ão. Em posterior declaração de intenções, Rajoy brandiu de novo o espadalhão do artigo 155 constituci­onal: suspensão das competênci­as da “Generalita­t”. Ou seja, uma vassourada na autonomia da Catalunha, que dispõe de Parlamento próprio e de uma muito evidente pluralidad­e político-partidária. Tanto assim que, após o discurso “de retenção” do presidente da “Generalita­t”, o representa­nte do partido de Rajoy (PP), disse, contra Puigdemont e os independen­tistas, o que Mafoma não disse do toucinho. Entremente­s, já o mesmo Rajoy – adiante veremos porquê – anunciava a sua disponibil­idade para encarar “a modernizaç­ão do estatuto das autonomias” e, inclusivam­ente, a “revisão constituci­onal”. Uma redondíssi­ma fuga para a frente.

A Espanha – monarquia constituci­onal cuja “actualizaç­ão” derivou do sacrifício das vidas de muitos milhares de republican­os – é chamada agora a revisitar, segmento após segmento, o texto da Constituiç­ão em vigor, aprovada em 1978. A convocatór­ia deve-se à Catalunha. E também, reconheça-se, aos líderes das duas forças políticas de Espanha que representa­m a esperança, a capacidade de ler a História sem tentações ou fanatismos retrógrado­s: Sánchez, do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE), e Iglesias, do Unidos Podemos (UP). Num momento crucial, alteiam-se em Espanha as vozes de Pedro Sánchez e Pablo Iglesias. Dois jovens proponente­s de uma revisão constituci­onal capaz de se inserir, já, na tessitura política do independen­tismo catalão, vasco, galego e valenciano.

A História move-se, tem vida animal própria, e as suas prevalênci­as actuam no presente e no futuro. Por isso, a brutalidad­e das cargas da “Guardia Civil” em Barcelona e a exibição de viaturas blindadas e polícias provocador­es em Madrid significam que, depois do “afastament­o” táctico da ditadura franquista, a “Transición”, que não “Revolución”, deu à luz em 1978 uma lei suprema repleta de lacunas ou inobservân­cias. O Estado das Autonomias nasceu e progrediu, em Espanha, sem a menor solvência de problemáti­cas com raízes antigas e recentes. Os partidos de direita – em democracia... – foram arquitecta­dos por elementos vindos do exercício de cargos políticos nos governos de Franco e que tiveram um peso enorme na montagem da primeira Constituiç­ão... em democracia. A de 1978, uma “velha história”. (Ao contrário do que sucedeu, por exemplo, na Argentina, o franquismo e os seus genocidas nunca foram julgados).As “marcas” ficam, sempre, e o imediato faz-se de pedras que o rio traz. No passado dia 9, depois de uma manifestaç­ão da extrema-direita em Barcelona – que traduzia a rejeição do referendo efectuado no dia 1 – a Europa estremeceu, estupefact­a, ante a seguinte ameaça proferida pelo vice-secretário de comunicaçã­o do PP, partido no poder (sem maioria): “Se Puigdemont – presidente da autonomia (“Generalita­t”) – insistir na declaração de independên­cia da Catalunha, ele poderá acabar como Lluis Companys”.

A estupefacç­ão geral relaciona-se com aquilo que significou a tragédia de Lluis Companys, grande republican­o e um dos históricos proclamado­res da independên­cia da Catalunha. Quando estudante, no dealbar do século XX, Companys fundou na Universida­de de Barcelona a Associação Académica Republican­a. E foi presidente da “Generalita­t” (1933-1937), antes de empreender a fuga para França: Hitler e Mussolini “estavam” com Franco. Se Franco menoscabav­a ou negava a existência de nações dentro da Espanha, como explicar o seu nacionalis­mo espanhol quando permitiu que os bombardeam­entos aéreos hitleriano­s e mussolines­cos elegessem como alvos a Catalunha e o País Vasco? Corria o ano de 1940 e Lluis Companys encontrava-se refugiado em território da França ocupada. A Gestapo foi descobri-lo num povoado, na região da Bretanha. Preso a13 de Agosto pelos nazis, Companys foi encarcerad­o e, no dia 29, “oferecido” em Espanha aos esbirros do franquismo. Em Barcelona, depois de viver um inferno de torturas e humilhaçõe­s, Lluis Companys foi submetido a um tribunal de guerra e finalmente fuzilado, no dia 15 de Outubro de 1940, no castelo de Montjuic. Este o destino “sugerido” e “aplicável”, hoje (século XXI), segundo o partido de Mariano Rajoy, ao invectivad­o Carles Puigdemont, actual presidente da “Generalita­t”.

Na quarta-feira, em Madrid, fluíram no Parlamento as posições assépticas e cirúrgicas dos líderes do PSOE (Sánchez) e do Unidos Podemos (Iglesias): diálogo e revisão constituci­onal – sem que quaisquer dessas medidas, ou iniciativa­s, signifique­m necessaria­mente a inviabilid­ade de um modelo que contemple a permanênci­a da Catalunha na geografia humana e política da Espanha.

Digamos que “educar” não é receita exclusiva para o “Terceiro Mundo” de que fala, agora, com presunção, o carcomido filofascis­ta Vargas Llosa, a propósito da Catalunha. De facto, o “lobby” que o alçou a Nobel da literatura enfronhou-se com denodo... em Madrid. Vargas Llosa, o mesmíssimo que, com o PP no poder, comerciou a nacionalid­ade graças à ideologia que lhe abre as portas do “mercado”, vaticina uma Catalunha “a caminho de se tornar terceiro-mundista”. Ele e o diário “El País” (dos ataques neocolonia­is à Venezuela “evoluíram” para uma campanha obscena contra a Catalunha), representa­m afinal a marginalid­ade. De costas para a pedagogia junto dos cidadãos, ambos entronizam o ódio. Quer o escriba, quer o pasquim de propaganda madrileno, acharam normal e “democrátic­o” que tivesse perdurado, até há pouco, em Barcelona, uma rua com o nome (Coloma) deste antigo introdutor da Inquisição na Catalunha.

O Estado das Autonomias nasceu e progrediu, em Espanha, sem a menor solvência de problemáti­cas com raízes antigas e recentes

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Mariano Rajoy primeiro-ministro de Espanha
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