OSVALDO GONÇALVES
Prazeres mundanos
No fim de tudo, leva-se a língua aos intervalos dos dentes e procura-se arrancar a golpes de ventosa os restos de comida, assobiando por dentro
Os prazeres não se medem aos palmos. Estamos certos disso. Há prazeres pequenos, mundanos, que são prazeres grandes, se sentidos na sua plenitude, e há prazeres que não dão prazer nenhum, se ofuscados por um desprazer (do momento, da companhia...).
Que prazer teria, por exemplo, beber um gole d’água, se a sede não apertasse? Mas é ainda maior o prazer de beber esse gole de um líquido insípido (digam o que disserem, a água não sabe mesmo a nada) do gargalo de uma garrafa às 4h27 da manhã. Imagine-se o prazer de sentir a água fria a escorrer pela garganta, o gorgolejar que não se ouve por fora, mas por dentro, como se boca e ouvidos fossem a mesma coisa: um rio de grande caudal, calema batendo forte numa enseada.
E mais: o prazer de ser uma aventura. Os sentidos atentos, como um pastor alemão de orelhas em pé, à mínima aproximação de gente. Não se bebe água pela garrafa, é falta de educação. Mas bebe-se pela aventura, pelo desafio à instituição, por um anseio de liberdade, por simples rebeldia e... pelo prazer de mandar todo mundo à fava.
Ainda nesse campo, quem não gosta de roubar batatinhas fritas, acabadas de sair da frigideira, bem nas barbas da mulher, como se se tratasse de um crime de lesa majestade? E de chuchar o tutano de um osso e depois lamber as pontas dos dedos e fazer estalar a língua? Como é bom fazer de aspirador com um fio de macarrão devidamente envolvido em molho! No fim de tudo, leva-se a língua aos intervalos dos dentes e procura-se arrancar a golpes de ventosa os restos de comida, assobiando por dentro.
Que prazer pode dar a leitura de um jornal velho, com as páginas amalerecidas, a cheirar a mofo, semicarcomido pelas traças, a não ser sentado na retrete? Sim, ler artigos de opinião, crónicas, crítica literária, entrevista com escritores, poetas, filósofos, receitas de culinária, o horóscopo, em jornais velhos com a companhia inseparável de um cigarro, o físico entregue à nudez completa, os chinelos de dedo gastos pelo uso e odores misturados do perfume dos champoos e sabonetes e das impurezas humanas.
Quem não gosta de tirar macaquinhos do nariz? Assim, com toda a propriedade, meter o dedo mindinho no nariz e retirar restos de muco já seco e depois fazer bolinhas e atirá-las em voo para longe. De manhã, curte-se sem saber o prazer de aliviar os cantos dos olhos de restos do sono, ramelas pegajosas aí devidamente depositadas por lágrimas que não pedem autorização para sair.
E arrotar sonoramente num almoço a sós sem ter de pedir licença nem desculpas a quem quer que seja? E peidar-se a descer as escadas de um prédio de dez andares, à espreita para ver se vem alguém a subir? E aliviar a bexiga de encosto a uma árvore, a esconder o sexo com as mãos em concha? E dar uma palmadinha no traseiro da mulher, como se o nosso atrevimento estivesse excepcionalmente espevitado e ela não fosse aquela moça antiga, mas a vizinha que acabou de se mudar para o apartamento ao lado?
Maldade pequena, mas que não deixa de dar prazer (ainda que um tanto sádico) é estalar os dedos das crianças. Diz-se: tens as mãos sujas e... trás, estala-se-lhes o dedo médio. E arrancar um espinho das costas, como se ainda fóssemos adolescentes? E sentir o ardor de uma bitacaia ainda nova no dedão do pé? E atirar uma pedra ao cão do vizinho?
Afinal, que prazer daria resgatar este texto que tem cerca de 20 anos e teve a versão original publicada neste mesmo jornal, se não tivessemos a certeza da existência de novos leitores e a esperança, ainda que vaga, que quem já o leu ia gostar de reler?
Falem-me de prazeres e eu digo: vivam-nos. Os prazeres são tão mundanos como a própria vida. E esta, em si, é um grande prazer.