AS SUBESFERAS
Evocação do sonho da República Socialista das Astúrias
Quando esta crónica chegar às bancas, a Catalunha poderá achar-se em regime de “ocupação territorial”, a coincidir talvez com uma “declaração unilateral” de “independência” que Madrid consideraria ou considerará “ilegal”. No fundo, um singular “choque de interpretações” na imensa pradaria da História Universal: a Catalunha, a Península Ibérica, Castela, Europa, os Descobrimentos, a Conquista. O nó digital não é exclusivo da “Generalitat”catalã. Nós - eu e os leitores - já pisámos estes terrenos. A novidade, desta feita, seria uma longa incursão em segmentos da História que poderiam, até, levar-nos à figura da princesa inca Cuxirimay Ocllo, neta de Viracocha e casada com o cronista, ou uma espécie de historiador, Juan de Betanzos, espanhol de Alicante.
Esta cidade, Alicante, é hoje a segunda, em população e “turismo”, do chamado País Valenciano, capital em Valência, idioma próprio, orgulho identitário. O universo inca, ou incaica, guarda inúmeras lições da história profunda de Castela e das várias nações peninsulares envolvidas no difícil parto da Espanha enquanto tal. Depois desses, os instrumentos mais úteis para a compreensão dos dias que se vivem hoje na Catalunha são as consequências da perda, pelo reino de Castela, das suas possessões nas Américas, e a atitude dos escritores e pensadores que, em língua castelhana, deram a conhecer a sua postura crítica. Eles constituíram a já mencionada, nestas colunas, Geração do 98. O século XIX terminava, a Espanha difusa e dispersa vivia uma crise existencial aguda. Perdera, para os Estados Unidos, as Filipinas e Porto Rico. E também Cuba, precisamente em 1898, quando obrigada a assinar o histórico Tratado de Paris. A Cuba de José Marti e António Maceo alcançava, assim, a independência nacional. No bloco de escritores e pensadores de intervenção do “98”(críticos de cariz sociológico da então decadência da Espanha), inseriam-se homens da talha intelectual de Azorín, Pio Baroja, Miguel de Unamuno, Antonio Machado ou Ramón del Valle-Inclán. Por acaso, nenhum deles nascido em Castela ou, digamos, Madrid. Unamuno e Baroja, o “homem da boina”, eram ambos do País Vasco. Azorín, valenciano. Machado, andaluz (nasceu em Sevilha) e ValleInclán, da Galiza (nasceu e morreu em Santiago de Compostela).
Todos estes homens nascidos no século XIX ajudam-nos a compreender a Espanha de hoje e o conflito imperante na Catalunha. Ajudamnos a perceber como o poder central menosprezou advertências e ensinamentos tão importantes como, por exemplo, as políticas dizimadoras da Conquista e os movimentos sociais, em Espanha, em defesa de valores aglutinantes que as monarquias sempre reprimiram ou esmagaram. Os mecanismos racionais, por muito adversos que sejam os caminhos trilhados, oferecidos pela História, recolocam-se agora no tabuleiro político da questão da Catalunha. Há poucos dias, em contacto telefónico com um antigo camarada do jornal catalão “La Vanguardia”, foi-me proporcionada uma das interpretações do conflito Madrid-Barcelona menos valoradas pelos politólogos europeus. A de Esteban Vidal, que traz para o centro da contenda “o confronto entre as elites de Madrid e Barcelona”. Traduzido numa “luta entre diferentes legalidades”: a do Estado espanhol, que pretende conservar o seu controle sobre o território e a população da Catalunha, e a invocada pela “Generalitat” sobre a Catalunha para tornar-se um Estado independente. De modo mais prosaico: “Conflito entre Estado central e a “Generalitat”, nacionalismo espanhol e nacionalismo catalão, espanholismo e catalanismo, burguesia espanhola e burguesia catalã”. Simplificação reducente? Em parte bastante considerável, sim. Porque as burguesias espanhola e catalã são parcela mínima na geografia política, sentimental, cultural e memorativa da Espanha, da Península Ibérica e da América Latina. A um político de Madrid que acusou os professores catalães de sequestro intencional da língua castelhana nas escolas da Catalunha, replicou um homólogo catalão: “É falso. Tanto assim que os nossos estudantes obtêm notas altas na disciplina”, o castelhano. (Entretanto, em Barcelona “ninguém acredita” que o presidente do governo central, Mariano Rajoy, domine línguas nacionais como o catalão, o vasco, o valenciano).
A Geração de 1898 criticou “a apatia e a decadência” de uma Espanha privada de colunas imperiais, mas não foi activa quando da proclamação, em 1934, da República Socialista das Astúrias, presidida por Ramón González Peña. O sonho arrebatado da Aliança Asturiana (UHP), contemplou a convocatória de um proletariado empobrecido e excluído. Outubro de 1934 terá sido, pois, uma das grandes oportunidades históricas perdidas. Azorín (1873-1967), ensaísta valenciano do “98”, chegara a frequentar na Catalunha as colinas do anarquismo. E recusara mesmo cargos públicos no regime do ditador Primo de Rivera, mas acabou seduzido pelo poder monárquico-franquista. Os rasgos acomodatícios de escritores, pensadores, filólogos de grande envergadura, abundaram. (Entre as excepções conta-se o genial Gregório Marañón, que se exilou em Paris antes do regresso esmaltado de altíssimas contribuições inovadoras para as ciências médicas em Espanha). É certo também que, entre 1950 e 1958, o único intelectual, conservador, com visibilidade em pleno franquismo, era José María Pemán. Como que um “António Ferro junto de Oliveira Salazar”. Franco “começou cedo” as acções fascistoides de repressão das massas, antes mesmo da Guerra Civil. Ele próprio dirigiu as operações de Outubro de 1934, em Oviedo e Gijón, contra os mineiros apaixonados pelo sonho da República Socialista das Astúrias.
No massacre de 5 de Outubro daquele ano perderam a vida cerca de 2.000 operários asturianos. Impõe-se por fim recordar o que foi, no dia seguinte, parte do manifesto de Lluis Companys, mais tarde fuzilado: “Catalães, as forças monarquizantes e fascistas assaltaram o poder. (…) O Governo que presido assume todas as faculdades do poder na Catalunha. E proclama o Estado Catalão da
Nem sequer o socialista Pedro Sánchez, do actual PSOE, encerebra e assume o teor do manifesto de Lluis Companys…
Homens nascidos no século XIX ajudam-nos a compreender a Espanha de hoje e o conflito imperante na Catalunha. Ajudam-nos a perceber como o poder central menosprezou ensinamentos tão importantes como as políticas dizimadoras da Conquista e os movimentos sociais