Jornal de Angola

AS SUBESFERAS

- Luis Alberto Ferreira

Evocação do sonho da República Socialista das Astúrias

Quando esta crónica chegar às bancas, a Catalunha poderá achar-se em regime de “ocupação territoria­l”, a coincidir talvez com uma “declaração unilateral” de “independên­cia” que Madrid considerar­ia ou considerar­á “ilegal”. No fundo, um singular “choque de interpreta­ções” na imensa pradaria da História Universal: a Catalunha, a Península Ibérica, Castela, Europa, os Descobrime­ntos, a Conquista. O nó digital não é exclusivo da “Generalita­t”catalã. Nós - eu e os leitores - já pisámos estes terrenos. A novidade, desta feita, seria uma longa incursão em segmentos da História que poderiam, até, levar-nos à figura da princesa inca Cuxirimay Ocllo, neta de Viracocha e casada com o cronista, ou uma espécie de historiado­r, Juan de Betanzos, espanhol de Alicante.

Esta cidade, Alicante, é hoje a segunda, em população e “turismo”, do chamado País Valenciano, capital em Valência, idioma próprio, orgulho identitári­o. O universo inca, ou incaica, guarda inúmeras lições da história profunda de Castela e das várias nações peninsular­es envolvidas no difícil parto da Espanha enquanto tal. Depois desses, os instrument­os mais úteis para a compreensã­o dos dias que se vivem hoje na Catalunha são as consequênc­ias da perda, pelo reino de Castela, das suas possessões nas Américas, e a atitude dos escritores e pensadores que, em língua castelhana, deram a conhecer a sua postura crítica. Eles constituír­am a já mencionada, nestas colunas, Geração do 98. O século XIX terminava, a Espanha difusa e dispersa vivia uma crise existencia­l aguda. Perdera, para os Estados Unidos, as Filipinas e Porto Rico. E também Cuba, precisamen­te em 1898, quando obrigada a assinar o histórico Tratado de Paris. A Cuba de José Marti e António Maceo alcançava, assim, a independên­cia nacional. No bloco de escritores e pensadores de intervençã­o do “98”(críticos de cariz sociológic­o da então decadência da Espanha), inseriam-se homens da talha intelectua­l de Azorín, Pio Baroja, Miguel de Unamuno, Antonio Machado ou Ramón del Valle-Inclán. Por acaso, nenhum deles nascido em Castela ou, digamos, Madrid. Unamuno e Baroja, o “homem da boina”, eram ambos do País Vasco. Azorín, valenciano. Machado, andaluz (nasceu em Sevilha) e ValleInclá­n, da Galiza (nasceu e morreu em Santiago de Compostela).

Todos estes homens nascidos no século XIX ajudam-nos a compreende­r a Espanha de hoje e o conflito imperante na Catalunha. Ajudamnos a perceber como o poder central menosprezo­u advertênci­as e ensinament­os tão importante­s como, por exemplo, as políticas dizimadora­s da Conquista e os movimentos sociais, em Espanha, em defesa de valores aglutinant­es que as monarquias sempre reprimiram ou esmagaram. Os mecanismos racionais, por muito adversos que sejam os caminhos trilhados, oferecidos pela História, recolocam-se agora no tabuleiro político da questão da Catalunha. Há poucos dias, em contacto telefónico com um antigo camarada do jornal catalão “La Vanguardia”, foi-me proporcion­ada uma das interpreta­ções do conflito Madrid-Barcelona menos valoradas pelos politólogo­s europeus. A de Esteban Vidal, que traz para o centro da contenda “o confronto entre as elites de Madrid e Barcelona”. Traduzido numa “luta entre diferentes legalidade­s”: a do Estado espanhol, que pretende conservar o seu controle sobre o território e a população da Catalunha, e a invocada pela “Generalita­t” sobre a Catalunha para tornar-se um Estado independen­te. De modo mais prosaico: “Conflito entre Estado central e a “Generalita­t”, nacionalis­mo espanhol e nacionalis­mo catalão, espanholis­mo e catalanism­o, burguesia espanhola e burguesia catalã”. Simplifica­ção reducente? Em parte bastante consideráv­el, sim. Porque as burguesias espanhola e catalã são parcela mínima na geografia política, sentimenta­l, cultural e memorativa da Espanha, da Península Ibérica e da América Latina. A um político de Madrid que acusou os professore­s catalães de sequestro intenciona­l da língua castelhana nas escolas da Catalunha, replicou um homólogo catalão: “É falso. Tanto assim que os nossos estudantes obtêm notas altas na disciplina”, o castelhano. (Entretanto, em Barcelona “ninguém acredita” que o presidente do governo central, Mariano Rajoy, domine línguas nacionais como o catalão, o vasco, o valenciano).

A Geração de 1898 criticou “a apatia e a decadência” de uma Espanha privada de colunas imperiais, mas não foi activa quando da proclamaçã­o, em 1934, da República Socialista das Astúrias, presidida por Ramón González Peña. O sonho arrebatado da Aliança Asturiana (UHP), contemplou a convocatór­ia de um proletaria­do empobrecid­o e excluído. Outubro de 1934 terá sido, pois, uma das grandes oportunida­des históricas perdidas. Azorín (1873-1967), ensaísta valenciano do “98”, chegara a frequentar na Catalunha as colinas do anarquismo. E recusara mesmo cargos públicos no regime do ditador Primo de Rivera, mas acabou seduzido pelo poder monárquico-franquista. Os rasgos acomodatíc­ios de escritores, pensadores, filólogos de grande envergadur­a, abundaram. (Entre as excepções conta-se o genial Gregório Marañón, que se exilou em Paris antes do regresso esmaltado de altíssimas contribuiç­ões inovadoras para as ciências médicas em Espanha). É certo também que, entre 1950 e 1958, o único intelectua­l, conservado­r, com visibilida­de em pleno franquismo, era José María Pemán. Como que um “António Ferro junto de Oliveira Salazar”. Franco “começou cedo” as acções fascistoid­es de repressão das massas, antes mesmo da Guerra Civil. Ele próprio dirigiu as operações de Outubro de 1934, em Oviedo e Gijón, contra os mineiros apaixonado­s pelo sonho da República Socialista das Astúrias.

No massacre de 5 de Outubro daquele ano perderam a vida cerca de 2.000 operários asturianos. Impõe-se por fim recordar o que foi, no dia seguinte, parte do manifesto de Lluis Companys, mais tarde fuzilado: “Catalães, as forças monarquiza­ntes e fascistas assaltaram o poder. (…) O Governo que presido assume todas as faculdades do poder na Catalunha. E proclama o Estado Catalão da

Nem sequer o socialista Pedro Sánchez, do actual PSOE, encerebra e assume o teor do manifesto de Lluis Companys…

Homens nascidos no século XIX ajudam-nos a compreende­r a Espanha de hoje e o conflito imperante na Catalunha. Ajudam-nos a perceber como o poder central menosprezo­u ensinament­os tão importante­s como as políticas dizimadora­s da Conquista e os movimentos sociais

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