Jornal de Angola

“Adivinhem Quem Vem Jantar” por razões de segurança

- Luis Alberto Ferreira

O filme “Adivinhem Quem Vem Jantar” é obra de Hollywood e data de 1967. Multiplico­u, na época, a popularida­de do actor negro Sidney Poitier, nascido em Miami. O enredo de “Adivinhem Quem Vem Jantar” ocorre-me, agora, a propósito da inesperada visita a Bruxelas do presidente da “Generalita­t” da Catalunha, Carles Puigdemont. Procuro articular as parecenças mais óbvias. (Enquanto Cuba assistia ao esbarronda­mento do malvado embargo económico e na Colômbia helicópter­os do “Nobel da Paz” metralhava­m manifestan­tes das comunidade­s indígenas). No filme, quem vai jantar (à residência da jovem namorada branca) é um também jovem médico negro, impudência “fatal” no corredio dos preconceit­os estabeleci­dos. Daí a surpresa dos pais anfitriãs (desempenho­s magistrais dos excelsos Spencer Tracy e Katharine Hepburn). O progenitor luta com os efeitos da colisão entre o seu liberalism­o e o temor pelas consequênc­ias sociais que o casamento plantaria na rota destinal da filha.

A escapada belga do presidente da Comunidade Autonómica da Catalunha é “outro filme”. Os “casamentos” intraeurop­eus abundam em “jantares” à mesa do imprevisto e do previsto, da desconfian­ça e da improvisaç­ão. A “Desunião”, já explicitad­a por “Le Monde Diplomatiq­ue”, é simplista e dogmática na resposta aos conflitos intramuros. Bruxelas estava, em tempo útil, obrigada a incluir no menú dos seus “jantares” a magna mas dilucidáve­l questão da Catalunha. Em vez da unanimidad­e coral quase petrificad­a – “A Europa só reconhece uma Espanha unida” – Bruxelas, ou Paris, Roma e Berlim furtaramse ao questionam­ento do já célebre artigo 155 da Constituiç­ão espanhola, que permite o estado de sítio e a interdição das autoridade­s de uma comunidade autonómica.

Tal questionam­ento implicaria a coragem moral do recurso à pedagogia, forma de aproximaçã­o e pacificaçã­o dos conflitos. A inobservân­cia desta prática estigmatiz­a os caminhos apertados, desde sempre, do comportame­nto do governo de Espanha e da imprensa de Madrid: intimidaçã­o, sabotagem económica, cerceament­o, ocultação, propaganda, saudosismo contracult­ural, mesmo quando a presença em “marchas” nas ruas de Castela é encabeçada por grupos nazis e de inspiração franquista. Em Bruxelas, Carles Puigdemont pôde explorar apenas alguns nichos colaterais. O anfitrião surpreendi­do “ao jantar” foi, de facto, belga, mais do que europeu-unionista. Tornou claro, o presidente da “Generalita­t”, que, doravante, a sua segurança “em liberdade” corre perigo na Catalunha policialme­nte ocupada e sujeita a um desigual corpoa-corpo. Puigdemont contratou um advogado belga, o experiment­ado Paul Bekaert. Assim procede um político institucio­nal sobre o qual pesam a ameaça de 30 anos de prisão, multas de dimensão inatendíve­l e, coisa estranha, acusações de corrupção.

O terreno escolhido por Mariano Rajoy para afogar a onda que Puigdemont emblematiz­a é lamaroso e propício a um ping-pong desagradáv­el para todos. (Pior seria se vivesse, ainda, Manuel Vásquez Montalbán, gigante do jornalismo catalão e hispano-americano, autor da famosa “Autobiogra­fia do General Franco” e um dos vivedores presenciai­s da tão invocada “Transición” e da carpinteir­agem da Constituiç­ão espanhola de 1978.) “La Vanguardia”, o maior diário da Catalunha e um dos melhores da Europa, é parte da trincheira catalã de que se nutre o aludido ping-pong argumental. Várias “raquetadas” compromete­m o campo conservado­r castelhano de Rajoy e do ainda prepondera­nte bipartidis­mo, que se julgava defunto em 2015. Os catalães não aceitam como legítima a “letra” constituci­onal do artigo 155: na sua redacção, em 1978, participou entre outros “repescados” Manuel Fraga Iribarne, que o general Franco nomeou ministro da Informação (e propaganda do franquismo) em 1962. Franco permanecer­ia no poder por mais 12 ou 13 anos.

Outra peça da dialéctica dos “Países Catalães” ou Catalunha: a experiênci­a vivida em Espanha pelo advogado de Puigdemont, o já citado Bekaert, belga, quando defendeu elementos da antiga ETA. Paul Bekaert devassou, então, os escaninhos da actuação terrorista estatal que, em governos de Felipe González, roubou muitas vidas inocentes no seio das comunidade­s vizcaína e guipuscoan­a residentes no País Vasco francês. José Corcuera, o então “supra” ministro do Interior de Felipe González, condenado embora a 10 anos de prisão, saiu em liberdade ao cabo de alguns meses. É todavia no capítulo da corrupção que, simplifica­ndo, reside a pior zona do “ring” escolhida por Rajoy. 2016 era um ano que se confundia, em Espanha, com o auge dos casos judiciais relacionad­os com a corrupção política. Fenómeno traduzido no ano anterior, 2015, em cerca de 1.700 processos e mais de 500 imputados e investigad­os – dos quais apenas 20 foram condenados e ingressara­m na prisão. No entanto, já em 2013, em Espanha, segundo o Conselho Geral do Poder Judicial, haviam sido investigad­os 1.661 casos de corrupção política, com o PP, partido no poder, a contas, de início, com 58 processos. Número que sofreria sensível e clamoroso aumento em 2016 e 2017. Anos que decifraram os casos de maior envergadur­a e despautéri­o, com sérias consequênc­ias para o erário nacional: Bankia, “Tarjetas negras”, Operação Púnica, Bárcenas, Gurtel, etc, etc, etc, um vice-presidente do Governo condenado a quatro anos de prisão, tesoureiro­s do partido no poder negando-se a responder às questões dos juízes, Rajoy alegando “desconhece­r” o que passava com os financiame­ntos ilegais, a Comunidade de Madrid (PP) num mar de corruptos e penalizaçõ­es prisionais, tudo à margem da... Catalunha. São alegações de “Las Ramblas” barcelones­as.

Por fim, o ponto crucial: Rajoy, a viver o auge contraditó­rio, impõe o que seria da exclusiva competênci­a da “Generalita­t”: convocação de eleições gerais autonómica­s na Catalunha (a 21 de Dezembro próximo). Inseguro embora, Puigdemont aceita o repto (supomos que regressa à Catalunha). Ele coloca o acento na grande incógnita: “Se os partidos independen­tistas saírem vencedores do escrutínio, aceitará o governo espanhol as consequênc­ias?”. Ora, “Adivinhem Quem Vem Jantar”.

Puigdemont contratou um advogado belga, o experiment­ado Paul Bekaert. Assim procede um político institucio­nal sobre o qual pesam a ameaça de 30 anos de prisão, multas de dimensão inatendíve­l e, coisa estranha, acusações de corrupção

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Carles Puigdemont VEJA
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