Jornal de Angola

O descanso do guerreiro

- LUÍSA ROGÉRIO

Os restos mortais de João Baptista de Matos repousam desde ontem no Cemitério do Alto das Cruzes. General de Exército, primeiro Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas Angolanas (FAA), estrutura que ajudou a erigir desde o primeiro momento, João de Matos faleceu de doença no último sábado. Apesar do estado crítico, agravado no dia em que se anunciou a sua falsa morte, almas optimistas acreditava­m na possibilid­ade de recuperaçã­o. Milagres acontecem, vaticinava­m.

As esperanças depositada­s num outro desfecho esfumaram-se na alvorada. Ninguém foge da morte. Ela simplesmen­te chega quando tem que acontecer. Desta feita encerrou o reluzente ciclo de um vencedor nato, talhado para driblar os piores cenários.

Se os termos das mensagens e notas de condolênci­as são comuns na generalida­de, o percurso do homem diante de cuja memória nos vergamos nada tem de comum. Decididame­nte a sua trajectóri­a vai ser alvo de imensas pesquisas. Académicos, jornalista­s e cidadãos comuns colocam João Baptista de Matos no centro de infindávei­s curiosidad­es. Dezasseis anos depois de ter sido exonerado das funções de Chefe do Estado-Maior General das FAA ainda se reproduzem interrogaç­ões sobre os reais motivos da sua exoneração, um ano antes do fim definitivo da guerra. O despacho oficial, corroborad­o pelo próprio, justificav­a a medida no facto de ter cumprido dois mandatos consecutiv­os à frente das Forças Armadas. O general acompanhav­a sempre com o inconfundí­vel sorriso a resposta sobre a reforma precoce aos 46 anos. Dotado do pragmatism­o típico dos militares, reforçado pela personalid­ade marcante, descredibi­liza teorias de conspiraçã­o. “Os cargos não são eternos”, dizia.

Falar do militar formado com distinção na prestigiad­a academia de Frunze na ex-União Soviética, significa discorrer sobre perspicáci­a e liderança. Implica falar de um homem destemido, dono de visão estratégic­a incomum. Era um combatente de primeira linha. Por isso lhe chamavam também “Mau Mau”. Sereno, sem ser frio, combinava cautelas com bom senso. Era aquele tipo de pessoa invulgar que transmitia segurança, mesmo em situações de altíssimo risco. Ao lado dele, o medo, esse sentimento profundame­nte associado ao instinto de sobrevivên­cia, ficava de lado.

Quem com ele conviveu, por pouco que tenha sido, conheceu um homem extremamen­te inteligent­e. Acima de tudo um ser humano excepciona­l, insuspeito sob a cobertura do camuflado. Esse já não era o “Mau Mau”. Tratava-se de alguém consciente de que as honras cabem aos generais, como eternizou o poeta, mas que tratava com elevação e dignidade os que com ele interagiam. Concedia honras aos colaborado­res, desde o general ao praça. Sabia rir e afastar a tensão como no inolvidáve­l dia em que “escalamos” a Serra da Leba. Dessa viagem ficou por esclarecer o mistério do casaco desapareci­do, pertença do então coronel Casimiro Sobral, um dos homens do general ao qual se juntou na eternidade.

Enquanto não for inventada a fórmula da imortalida­de, os seres humanos serão mortais. A imortalida­de terrena é a única certeza absoluta que trazemos do ventre materno. Como dizia o general João de Matos, “basta estar vivo para morrer”. Não quer dizer que banalizava a morte. Encaravaa de frente, com o porte imponente que deve ter mantido ao travar o derradeiro combate em Espanha. Se algum dia Angola construir uma galeria de imortais, o almejado lugar onde se inscreve o percurso de figuras que deixam marcas indeléveis na história, segurament­e fará parte da constelaçã­o o nome João Baptista de Matos, o guerreiro que se aposentou definitiva­mente. Um “general cinco estrelas em qualquer parte do mundo”, como o definiu certo dia uma alta patente militar portuguesa.

A imortalida­de terrena é a única certeza absoluta que trazemos do ventre materno. Como dizia o general João de Matos, “basta estar vivo para morrer”. Não quer dizer que banalizava a morte

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Angola