A crónica de Luís Alberto Ferreira
Estávamos em Março de 2016. No dia 21, a imprensa de Madrid noticiava: “Obama chega a Cuba para acelerar a transição para a democracia”. E, no dia 22: “Obama pede a Castro (Raúl) que haja democracia e liberdade em Cuba”. Que saibamos, as liberdades cubanas resultam na magnificação possível da qualidade de vida que a saúde e o ensino garantem. Não poucos norte-americanos percebem no livre acesso à compra de armas de fogo de qualquer calibre um valor libertário. A ser assim talvez nos “equivoquemos”, eu e quantos entendamos que liberdade e liberticídio são “coisas” muito distintas. (Domingo passado, no sul do Texas, um livre-atirador que nada tinha de muçulmano ou de “militante” do Estado Islâmico abateu a tiro 26 pessoas indefesas que oravam no interior de uma igreja).
Quando da mesma visita de Obama a Cuba, o verdadeiro acontecimento atribuível à sua comitiva terá sido, de facto, o encontro, em Havana, por alguns considerado “impensável”, de John Kerry, secretário de Estado norte-americano, com os representantes da guerrilha das FARC nas negociações para a paz na Colômbia. A entrevista realizou-se mesmo, pese a alguns intencionais propósitos de tergiversação. Havana acomodou as duas delegações na privacidade de “El Laguito”, lugar para visitas especiais. E John Kerry revelou-se, face aos ex-guerrilheiros colombianos, um conversador desinibido e realista. Quando seria de esperar que a notícia do encontro galvanizasse, na Colômbia, toda a sociedade, sucedeu a pirueta dos revanchistas: o ex-presidente Álvaro Uribe, ultramontano, conhecido na Europa como organizador dos paramilitares e “esquadrões da morte” ou “guardias blancas”, barafustou: “Muitos colombianos sentimo-nos ofendidos pela reunião do Governo dos Estados Unidos com as FARC”.
Uribe, com o rótulo internacional de beneficiário e instigador do terrorismo na capital e no interior da Colômbia, teve a secundá-lo outro ex-presidente, Andrés Pastrana, autor de um comentário mais absurdo, ainda. Pastrana, arquitecto do famoso “Plano Colômbia”, a grande aliança militar e de inteligência com os Estados Unidos, escreveu no twitter a seguinte idiotice: “Insólito, John Kerry a facilitar em Cuba a desarticulação das instituições democráticas na Colômbia” (!!!). Estultícia digna de manicómio.
Sublinhe-se que Barack Obama respondeu bem a esta cadeia de irresponsabilidades: destacou um alto funcionário da sua administração, Bernie Aronson, para a missão de enviado especial do seu Governo junto das conversações de paz colombianas. E fez mais, o então presidente Obama: comprometeu-se a pedir, no Congresso, 450 milhões de dólares para sustento das novas exigências pós-conflito no país andino. Não tendo havido confirmação do envio dessa quantia para o Governo de Bogotá, subsiste todavia a pertinência de uma nova reflexão sobre a Colômbia pós-conflito e a América do Sul.
A isso nos compelem factos também novos. Os mais recentes traduzem-se na presidência de Trump e nas manobras militares agora efectuadas no Brasil sob a “direcção” do Comando Sul norteamericano. Com a participação das Forças Armadas daquele país e também da Colômbia. O regime conservador de Bogotá vangloria-se e sabe fruir a presença, em território nacional, das famosas sete bases militares dos Estados Unidos. A fatia orçamental colombiana para a Defesa, garantem os analistas, mais parece um pressuposto de guerra. Desde a libertação nacional operada em tempos já remotos por Símon Bolívar, a Colômbia jamais conheceu a democracia. Obama aparentou interesse pelas exigências económicas do processo de paz. Este, contudo, uma vez mais, nasce anquilosado. A partir da assinatura dos “Acordos de Havana”, a situação interna na Colômbia piorou até ao inacreditável. Na sua boa-fé, os antigos guerrilheiros das FARC depuseram, entregaram as armas. Desde então, cerca de trinta e alguns dos seus familiares foram assassinados. Ao longo deste ano, perderam a vida na Colômbia 126 activistas sociais, a maior parte “indígenas” do mundo rural. Na região de Tumaco, forças policiais assassinaram oito camponeses também “indígenas”. As cargas policiais sobre as populações são constantes, um pouco por todo o país. À espreita não se sabe de que conjuntura – pretextos para “intimidar” a Venezuela? – o Comando Sul norteamericano envolve a Colômbia e o Brasil numa operação absolutamente “extemporânea” e dissociada da situação interna a crepitar nesses dois países da América do Sul.
Na Colômbia acontece o que ao longo dos últimos 60 ou 70 anos se fez rotina: a guerrilha (antes o M-19 e a União Patriótica, agora as FARC e o ELN), assina compromissos com o poder, assume a condição de partido político e pensa numa “vida normal”. De súbito, a “esperada” repressão vingativa – que ao longo de duas décadas, 1980 e 1990, resultou em mais de 5.000 mortos ou desaparecidos, um genocídio fenomenal. História longa, mais de uma vez aqui mencionada mas sem a profundidade e a magnitude que me proponho, ainda, disponibilizar ao serviço dos leitores deste jornal. Nomeiam-se, uma vez mais, “comissões de esclarecimento”. Delimitam-se “circunscrições territoriais de paz”. Anunciamse “reformas políticas”. De verosímil, apenas a violência sobre os mais indefesos. A guerra colombiana interessava aos seus principais beneficiários: os grandes agricultores. Que, agora, expulsam e matam camponeses – e ocupam as terras até há pouco dominadas pela guerrilha. Há uma continuada resistência sistémica, apoiada na negação oficial dos crimes de militares, polícias e paramilitares contratados. Não se vislumbram mudanças de modelo político. Não tem havido sequer, no mundo rural, medidas substitutivas dos cultivos de coca por outros que garantam o sustento dos camponeses. Manobras militares – de inspiração estrangeira – em solo de um continente em crise política, económica e social profundíssima, deixa-nos pouco menos que atónitos.
O insólito tem limites, mas recrudesce: ouvi, num debate na RTVE, que “na Catalunha não há presos políticos, apenas pessoas presas por motivos políticos”. Afinal o insólito é, também, trapezista. Trapezista inábil no descaramento e na aleivosia. O insólito é felino.
Desde a libertação nacional operada em tempos já remotos por Símon Bolívar, a Colômbia jamais conheceu a democracia. Obama aparentou interesse pelas exigências económicas do processo de paz