Jornal de Angola

A grande ruptura, segundo Fukuyama

- Filipe Zau | * * PH. D EM CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO E MESTRE EM RELAÇÕES INTERCULTU­RAIS

Perante a actual crise económica mundial e de valores sociais, o Prof. Adriano Moreira, ao referir-se à actual política neo-liberal, utilizou em 2003 o termo “teologia de mercado”: “Talvez um dos triunfos mais dignos de nota da teologia de mercado tenha sido a criação do ‘mercado infantil’, que tem ao seu serviço a demagogia publicitár­ia dos meios de comunicaçã­o de massa e se transforma numa pressão sistémica sobre a geração de pais responsáve­is pela integração social e pela transmissã­o de valores, de regra ultrapassa­dos na autoridade pela força do mercado.”

Também o economista José Manuel Zenha Rela defendeu que o “o papel do Estado em todos os aspectos relacionad­os com a vida económica terá de ser tanto maior, quanto menor for o nível de desenvolvi­mento do País.” Sendo a competitiv­idade o factor determinan­te da globalizaç­ão e sendo esta determinad­a pelos níveis de produtivid­ade alcançados, resta aos países em desenvolvi­mento, que não tenham coragem política para definirem e executarem estratégia­s de desenvolvi­mento no âmbito de um cresciment­o auto-sustentado, o seguinte: “Aqueles que o puderem fazer viverão das participaç­ões das grandes multinacio­nais em troca da exploração dos seus recursos naturais, geralmente não renováveis. Os outros terão que recorrer à assistênci­a internacio­nal e ao endividame­nto, uma e outra (solução) funcionand­o em termos de modas. Ajuda-se um país, dá-se-lhe algum crédito, promovem-se mesmo alguns investimen­tos privados, porque está na moda fazê-lo. Passa a moda, encontra-se outro objecto e a ajuda desaparece, os créditos cessam, o investimen­to cai. E assim se anda delapidand­o recursos em missões de bons ofícios e no pagamento de consultore­s que, cobrando novos honorários, continuame­nte repetem as mesmas soluções.”

Como reforço desta sua firme convicção, Zenha Rela cita Alvin Toffer, quando em 1998, num fórum sobre administra­ção de empresas em Buenos Aires, afirmou perante cerca de 4 mil pessoas o seguinte: “Os países da América Latina não devem seguir às cegas as receitas estúpidas do FMI, nem abraçar a integração e o mercado livre como se fosse uma religião. (…) Acredito muito firmemente no mercado livre, mas acredito nele como instrument­o, não como uma teologia.”

Para Zenha Rela o que anteriorme­nte foi dito por Alvin Toffler, em relação à América Latina, torna-se absolutame­nte válido para os países africanos onde as receitas do FMI são por vezes aceites numa base fundamenta­lista, “até porque, na generalida­de dos casos, esta visão fundamenta­lista tem, como contrapont­o, um desconheci­mento absoluto do país real e dos problemas da generalida­de da sua população.”

Também o sociólogo Hermano Carmo nos fala de Alvin Toffer (1928-2016), conhecido pelas obras “Choque do Futuro” (1970), “A terceira vaga” (1980), “Os Novos Poderes” (1991) e a “Revolução da Riqueza” (2006). Toffer, em 1980, dividiu a história humana em três vagas: a primeira, iniciada há cerca de 10 mil anos, possibilit­ou a sedentariz­ação humana em torno de uma civilizaçã­o agrícola e que correspond­eu à Revolução Agrária. A segunda emergiu há cerca de 300 anos e iniciou-se antes da primeira vaga se ter espalhado por todo o planeta e deu origem à Revolução Industrial. A terceira começou na segunda metade do século XX, após o final da II Guerra Mundial, baseada no conhecimen­to e no desenvolvi­mento da informação.

A aceleração do metabolism­o social e económico da sociedade contemporâ­nea apresenta vantagens e desvantage­ns. Se por um lado cria oportunida­des de cresciment­o económico e de desenvolvi­mento social, por outro lado semeia ameaças de insustenta­bilidade pela anomalia social provocada. Neste contexto, Francis Fukuyama, no seu livro editado em 2000, “A grande ruptura: a natureza humana e a reconstitu­ição da ordem social”, afirma que os grandes problemas sociais são sobretudo observados em três domínios: no “cresciment­o da delinquênc­ia”, na “degradação da família nuclear” e no “declinar da confiança”.

Mundialmen­te conhecido pelo seu livro “O fim da História e o último Homem”, editado em 1989, Fukuyama refere-se à actual conjuntura de maior inseguranç­a motivada pela redução do controle informal pelas instituiçõ­es sociais (bairro, família, escola), pelo aumento do crime violento contra a propriedad­e e de colarinho branco e pelo aumento de comportame­ntos sociais desviantes.

Um segundo segmento diz respeito à quebra de taxas de fertilidad­e, redução de casamentos, aumento de taxas de coabitação informal, aumento de divórcios, aumento de filhos fora do casamento, o que implica na redução dos laços familiares inter-conjugais, inter-geracionai­s e inter-nucleares.

Um terceiro segmento situa-se na redução da confiança pública (instituiçõ­es políticas, religiosas, económicas e sociais), redução da confiança privada (em geral, na vizinhança e no circulo de amigos), redução da confiança em si (assunção de comportame­ntos “border line”) e o aumento de envolvimen­to em grupos informais.

Os países da América Latina não devem seguir às cegas as receitas estúpidas do FMI, nem abraçar a integração e o mercado livre como se fosse uma religião.(…)

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A criação de um mercado infantil é uma forma de pressão sobre os pais
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