Pôr fim à indiferença em relação à criança
A palavra “criança”, tantas vezes referida em discursos, mais ou menos pomposos, nos fóruns nacionais e internacionais, textos de insignes autores, mas também de ilustres desconhecidos, tem de começar a ganhar maior substância e respeito.
A palavra criança não pode continuar a ser pronunciada ou escrita - da forma desrespeitosa, como enfeite de texto ou discurso.
As Nações Unidas aprovaram, por unanimidade, em 20 de Novembro de 1989, a Convenção sobre Direitos da Criança, igualmente contemplada, logo em 1975, na nossa Constituição.
Dentro de poucos dias, nas mais variadas instituições de muitos países, bem como nas de índole internacional, a data é assinalada.
Representantes de Estados, partidos políticos - no poder e oposição, organizações sindicais, patronais, de juventude, da mulher hão-de esgrimir argumentos. Uns, anunciar vitórias, outros, criticar promessas por cumprir.
Alheias a tudo isto, longe dos discursos em salões climatizados ou em palanques ao ar livre, crianças em todos os continentes vão continuar a chorar. De medo e dor. Em dongos a sulcar mares desconhecidos. Onde foram colocados por pais, irmãos, avós. Todos sem futuro para lhes prometer, quanto mais garantir. Outras a atravessar desertos não menos impiedosos. Escondidas em pequenos matos à mercê de cobras traiçoeiras. Também em carroçarias de camiões sem ventilação. Proibidas de ter sede, calor, frio, fome. A chuparem seios secos de mães que nunca tiveram o que lhes dar, nem leite.
No mesmo instante dos discursos pomposos com promessas anualmente repetidas, trocas de acusações, milhões de crianças nos campos capinam. Ajudam a fazer lavras, carregam bacias e bidões de água. Quase tão grandes como elas. Desfalecem com fome.
Também há as que chegam sozinhas às grandes cidades, têm os olhos arregalados e bocas abertas de espanto. Pelo que vêem nas montras. Igualmente devido aos sons de buzinas e cantigas que lhes chegam de toda a parte. Destas, muitas estão prestes a ser arrastadas por multidões sem rosto, que desaprendeu a andar de vagar. E sem saberem podem estar a começar um ciclo que lhes pode modificar a vida para sempre.
A maioria destas crianças nunca foi à escola ou deixou-a demasiado cedo. Nenhuma está preparada para a voragem das grandes cidades. Que escondem perigos em todos os passos que dão rumo ao desconhecido, em cada pergunta que fazem, em cada passeio onde procuram descanso. Quando acordarem do sonho feito pesadelo estão outra vez a carregar bidões de água. Desta vez por escadas sombrias de prédios sem elevador ou luz eléctrica. Que hão-de subir igualmente com grades de cerveja, todas as embalagens e embrulhos pesados dos moradores que lhes pagam para poderem enganar o estômago. Até se convencerem que o álcool as ajuda a amortecer as dores do corpo e ainda faz esquecer por momentos a aldeia remota, família, fogueira que as aquecia à noite, o funji do fim da tarde. E hão-de continuar a ser enganados, quando acreditarem que a diamba pode também ser companhia.
A alternativa é “arrumar” viaturas. A actividade que, não raro, inclui lavagem e marcação de lugares. Mas, para isso é indispensável cair nas boas graças de grupos organizados. “Especialistas” no negócio. Tal como sucede com candidatos a engraxadores, ardinas, vendedores de água e gasosas. Ou à entrada na prostituição.
A criança tem direitos. Entre os quais sobressaem saúde e ensino. Igualmente, não menos importante, a brincar.
Um país apenas atinge a meta do desenvolvimento pleno, quando respeita na íntegra os direitos universais da criança.
Longe dos discursos em salões climatizados ou em palanques ao ar livre, crianças em todos os continentes vão continuar a chorar. De medo e dor. Em dongos a sulcar mares desconhecidos