Jornal de Angola

Pôr fim à indiferenç­a em relação à criança

- Luciano Rocha

A palavra “criança”, tantas vezes referida em discursos, mais ou menos pomposos, nos fóruns nacionais e internacio­nais, textos de insignes autores, mas também de ilustres desconheci­dos, tem de começar a ganhar maior substância e respeito.

A palavra criança não pode continuar a ser pronunciad­a ou escrita - da forma desrespeit­osa, como enfeite de texto ou discurso.

As Nações Unidas aprovaram, por unanimidad­e, em 20 de Novembro de 1989, a Convenção sobre Direitos da Criança, igualmente contemplad­a, logo em 1975, na nossa Constituiç­ão.

Dentro de poucos dias, nas mais variadas instituiçõ­es de muitos países, bem como nas de índole internacio­nal, a data é assinalada.

Representa­ntes de Estados, partidos políticos - no poder e oposição, organizaçõ­es sindicais, patronais, de juventude, da mulher hão-de esgrimir argumentos. Uns, anunciar vitórias, outros, criticar promessas por cumprir.

Alheias a tudo isto, longe dos discursos em salões climatizad­os ou em palanques ao ar livre, crianças em todos os continente­s vão continuar a chorar. De medo e dor. Em dongos a sulcar mares desconheci­dos. Onde foram colocados por pais, irmãos, avós. Todos sem futuro para lhes prometer, quanto mais garantir. Outras a atravessar desertos não menos impiedosos. Escondidas em pequenos matos à mercê de cobras traiçoeira­s. Também em carroçaria­s de camiões sem ventilação. Proibidas de ter sede, calor, frio, fome. A chuparem seios secos de mães que nunca tiveram o que lhes dar, nem leite.

No mesmo instante dos discursos pomposos com promessas anualmente repetidas, trocas de acusações, milhões de crianças nos campos capinam. Ajudam a fazer lavras, carregam bacias e bidões de água. Quase tão grandes como elas. Desfalecem com fome.

Também há as que chegam sozinhas às grandes cidades, têm os olhos arregalado­s e bocas abertas de espanto. Pelo que vêem nas montras. Igualmente devido aos sons de buzinas e cantigas que lhes chegam de toda a parte. Destas, muitas estão prestes a ser arrastadas por multidões sem rosto, que desaprende­u a andar de vagar. E sem saberem podem estar a começar um ciclo que lhes pode modificar a vida para sempre.

A maioria destas crianças nunca foi à escola ou deixou-a demasiado cedo. Nenhuma está preparada para a voragem das grandes cidades. Que escondem perigos em todos os passos que dão rumo ao desconheci­do, em cada pergunta que fazem, em cada passeio onde procuram descanso. Quando acordarem do sonho feito pesadelo estão outra vez a carregar bidões de água. Desta vez por escadas sombrias de prédios sem elevador ou luz eléctrica. Que hão-de subir igualmente com grades de cerveja, todas as embalagens e embrulhos pesados dos moradores que lhes pagam para poderem enganar o estômago. Até se convencere­m que o álcool as ajuda a amortecer as dores do corpo e ainda faz esquecer por momentos a aldeia remota, família, fogueira que as aquecia à noite, o funji do fim da tarde. E hão-de continuar a ser enganados, quando acreditare­m que a diamba pode também ser companhia.

A alternativ­a é “arrumar” viaturas. A actividade que, não raro, inclui lavagem e marcação de lugares. Mas, para isso é indispensá­vel cair nas boas graças de grupos organizado­s. “Especialis­tas” no negócio. Tal como sucede com candidatos a engraxador­es, ardinas, vendedores de água e gasosas. Ou à entrada na prostituiç­ão.

A criança tem direitos. Entre os quais sobressaem saúde e ensino. Igualmente, não menos importante, a brincar.

Um país apenas atinge a meta do desenvolvi­mento pleno, quando respeita na íntegra os direitos universais da criança.

Longe dos discursos em salões climatizad­os ou em palanques ao ar livre, crianças em todos os continente­s vão continuar a chorar. De medo e dor. Em dongos a sulcar mares desconheci­dos

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