Uaueé, o meu Kimbundo está a desaparecer
Cada vez mais e à medida que os anos vão passando, tem estado a aumentar a minha preocupação relativamente à perda de valores morais e cívicos na nossa sociedade. Essa preocupação aumenta, em igual ou maior proporção, quando me apercebo que, ao longo dos anos, vamos também perdendo um dos maiores patrimónios que os nossos antepassados nos deixaram: que é a língua materna. E referindo-me particularmente às regiões de Luanda, Bengo, Cuanza-Norte, Malanje e parte do Cuanza-Sul, já devem imaginar que devo estar a falar da língua nacional kimbundo.
E porque é que a minha preocupação se incide particularmente sobre o kimbundo? Não será por qualquer motivação de índole tribal ou regional, longe disso, mas tão somente porque este é o idioma que mais vai perdendo falantes, em detrimento do umbundo ou do kikongo, por exemplo.
Na minha modesta opinião, o que levou a que a língua kimbundo chegasse a este estado de coisas terá sido o facto de a grande maioria dos integrantes deste grupo etno-linguístico, das gerações passadas e actuais, a partir mais ou menos dos anos 30, principalmente aqui na região de Luanda, terem um certo complexo ou resistência em falar esta língua nacional.
Senão vejamos: o pouco kimbundo que sei falar, ou melhor, que percebo ou entendo hoje, devo à minha falecida avó materna, que coabitou alguns (não tantos) anos connosco, porque os meus pais, apesar de saberem falar a língua, não a praticavam, principalmente em casa. Talvez na igreja falassem um pouco. E o que ocorreu no seio da minha família neste quesito, também terá acontecido com milhares de outras que viviam e ainda vivem nesta grande metrópole que é Luanda.
Estes factores constituem pontos de estrangulamento que conduzem à degradação cada vez mais acentuada e perigam a preservação do património comum dos povos das regiões que citei.
Esta situação contrasta, de forma acentuada com o que eu tenho tido o grato prazer de observar nos últimos tempos, em determinados canais televisivos; primeiro por via de novelas brasileiras que a nossa TPA tem estado a transmitir e também através de programas informativos e de entretenimento de canais de televisão deste país da América do Sul, expressões em kimbundo, ditas por actores de novelas, ou apresentadores de programas televisivos (todos eles cidadãos brasileiros).
Não parece um tremendo paradoxo constatarmos que cidadãos de outro lado do Oceano Atlântico, que não são africanos, mas descendentes dos nossos antepassados que há mais de 300 anos atrás aportaram naquelas terras na condição de escravos, ainda hoje preservam termos da língua kimbundo para aí levados pelos nossos ancestrais!?
Já ouvi, por exemplo, em novelas brasileiras a seguinte expressão: “Vai na “venda” (loja) do sô fulano comprar” isto ou aquilo. À semelhança do que a minha avó dizia em kimbundo, quando me mandasse à loja da esquina:”Ndé mu venda yá ngana Fonseca ku sumba fadinha”, traduzindo para português: “vai à loja do sr Fonseca comprar farinha”. Como podemos observar, nos dois exemplos, a palavra “venda” (loja) está presente.
Outro exemplo que podemos usar aqui para ilustrar o quanto os brasileiros primam por preservar expressões de origem kimbundo é o termo “maconha” (liamba), que terá resultado da palavra “makanha” (tabaco em folhas da planta com o mesmo nome, que depois de secas os nossos ancestrais enrolavam-nas em pequenas porções e transformavam-nas em cigarro). Ainda hoje muitos dos nossos avós ou bisavós fumadores utilizam este método em determinadas regiões do nosso país. Alguns deles, fumavam com a parte acesa no interior da boca. Devem imaginar de que cor ficavam os dentes depois de vários anos de consumo desse tabaco nessas condições.
Muitos outros exemplos podemos espelhar como (desculpem¬-me a expressão): “olha ele, está pegando na bunda dela”!… O que os irmãos brasileiros designam de “bunda” é o equivalente a “mbunda” em kimbudo, que quer dizer, no português falado em Angola, nádegas, ancas, rabo, traseiro e que os do outro lado do Oceano designam também de “bumbum”.
Outros exemplos ainda poderíamos apontar, como um que foi dito por um apresentador conceituado de uma das maiores redes de televisão, ao divulgar excertos de um vídeo que foi viral nas redes sociais naquele país, no qual um adolescente de dez anos dizia disparates enquanto conduzia o carro da mãe dele. Dizia o apresentador: “0lhem o garoto xingando! E continua xingando”…
Para quem não sabe, a expressão “xingando”, a que aquele apresentador se referia, é derivada da palavra kimbundo “ku xinga” (acto de disparatar, de dizer asneiras).
Para melhor ilustrar o significado da palavra xingar, limito-me a acrescentar: “Ngondo ku kinga o jindaka”… (vou disparatar-te)… Outros exemplos ainda são que tanto os escravos idos de Angola e de outros países africanos não só contribuíram de forma exponencial para o desenvolvimento económico do Brasil e de outros países das Américas, mas também para a sua riqueza cultural, são os instrumentos musicais tradicionais levados além-mar pelos nossos antepassados.
De entre estes podemos citar do hungo (birimbau para os brasileiros), a puíta (cuica para eles), e muitos outros, sem falar da “capoeira”, que também foi levada daqui pelos nossos compatriotas que lá foram transformados em escravos (que era um misto de dança, modalidade recreativa e desportiva, mas que acima de tudo era uma forma disfarçada de se defenderem e de lutarem contra os opressores de então).
Será que vamos a tempo de salvar o nosso kimbundo?
Para quem não sabe, a expressão “xingando”, a que aquele apresentador se referia, é derivada da palavra kimbundo “ku xinga” (acto de disparatar, de dizer asneiras).