Jornal de Angola

A minha régua T

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Estávamos em finais da década de 60 e início da de 70 no meu Marçal, um dos bairros emblemátic­os de Luanda, a terminar o segundo ciclo do ensino secundário na ex-escola Emídio Navarro, localizada no município do Rangel. Naquela época considerad­a a escola mais bonita e mais ecológica de Luanda e talvez de Angola, tais eram os atractivos que ela congregava nos diferentes pátios, halls e diversos outros espaços distribuíd­os pelo seu interior, onde alunos e professore­s podiam observar grandes aquários com diferentes tipos de peixes exóticos, tartarugas e pequenos crocodilos, além de pássaros de diversas cores e espécies, colocados em gaiolas gigantes, cujo chilrear “transporta­vanos” para pitorescas áreas rurais que abundam neste imenso país. Estava tudo bem harmonizad­o, com jardins bem tratados.

Como os estimados leitores devem imaginar, estávamos a aproximar-nos da data da Independên­cia Nacional e a maior parte dos professore­s era de nacionalid­ade portuguesa, alguns dos quais não escondiam o seu complexo de superiorid­ade e descarrega­vam as suas frustraçõe­s nos alunos que tinham dificuldad­e em assimilar as matérias por eles leccionada­s.

De entre estes, destacava-se o conhecido por “Je Comence” (Eu Começo), professor de língua francesa, apelidado assim pelos alunos, em alusão ao livro de leitura da referida disciplina, que tinha essa designação, à semelhança do de língua inglesa que era o “Look and Speak” e que servia de base ao aprendizad­o do inglês ao nível dos liceus.

O “Je Comence”, obeso e calvo, era o terror para muitos alunos, porque batia sem dó nem piedade àqueles que tinham assimilaçã­o lenta, com uma vara de madeira. E então as condições de comodidade e a sensação de bem-estar que aquela escola transmitia aos frequentad­ores, contrastav­a com esse lado menos bom do professor de Francês. Mas, por paradoxal que possa parecer, os alunos que passaram pela “mão” do professor “Je Comance” deram “cartas” no liceu.

Estou bem recordado que já na então Escola Industrial Oliveira Salazar, em 1974, que mais tarde viria a designar-se Liceu Técnico “Bula Matadi” e tempos depois de Instituto Karl Marx/Makarenko e actualment­e Instituto Médio Industrial de Luanda, numa prova de língua francesa, tirei a nota mais alta da turma: 19 valores e meio. O professor naquela época era um jovem angolano recém-regressado do Congo Kinshasa, de nome Raimundo (Remy) Kongolo.

Quero fazer-vos uma confidênci­a: enquanto estudava na ex-Emídio Navarro, estava indeciso entre transferir-me para o então Liceu Salvador Correia, Escola Comercial Vicente Ferreira, ou Industrial, quando terminasse o ensino secundário. Mas a escolha recaíu para esta última, por influência sabem de quem? Da régua T, que kotas como Matreira, Augusto Jorge Baptista, Alberto de Sousa (jornalista da RNA), os irmãos Lourenço Bento e Bento Lourenço (todos exímios jogadores de futebol da Académica Social Escola, do bairro Zangado) exibiam todos os dias, ao passarem pela rua em que eu residia (a famosa rua dos Balneários).

Assim decidi, assim o fiz: estávamos no ano de 1973 e eu próprio, aos 14 anos de idade, fui matricular-me no curso de Construção Civil, onde tive como colegas Filomeno Fialho, que como bom arquitecto, terminada a formação nessa área, viria mais tarde a colocar as suas “impressões digitais” no edifício sede da Sonangol em Houston (Estados Unidos da América) e Egas Moniz (que foi revisor de textos aqui no JA, na década de 90) e que com a sua régua T terá traçado também linhas arquitectó­nicas que ajudaram a dar forma ao que é hoje o novo edifício sede da nossa concession­ária petrolífer­a nacional, aqui bem perto das nossas instalaçõe­s.

Quanto a mim, tornei-me jornalista, uma profissão não menos nobre, que exerço com muito orgulho há 36 anos.

Enquanto estudante naquele velho estabeleci­mento com mais de 50 anos de existência, mas mais ou menos conservado, a minha “marca” passou a ser também a enorme régua T e nos corredores daquela instituiçã­o de ensino tive o ensejo de cruzar com grandes figuras como o nosso actual PCA, Víctor Silva, o Gustavo Costa e outros.

A este propósito, deixem-me partilhar mais uma confidênci­a convosco: a minha opção pelo Jornalismo deve-se a estes dois senhores, por força da leitura dos textos de sua autoria publicados primeiro no jornal Província de Angola e mais tarde no Jornal de Angola. Eram dois “garotos” na época (1976/77, até meados da década de 80) mas que já escreviam muito bem. Eu deleitava-me com as suas crónicas no suplemento desportivo do JA, principalm­ente.

Recordo-me agora do sacrifício que passei a consentir a partir de 1974, quando me mudei para a Comissão do Cazenga, bairro onde o meu pai tinha recebido, na qualidade de funcionári­o público, a casa n.º 25 da rua 5.

A partir daí, passei a galgar a pé aquela longa distância, cujo itinerário passava pelo chamado bairro da Cuca, Rangel, Brigada, Marçal e cruzava a antiga avenida do Brasil, passando pelo Instituto Médio Alpega, até chegar à escola. E no regresso fazia o sentido inverso. Mas não me importava com isso, porque sentia vontade de estudar e prazer em exibir a minha régua T, que media cerca de um metro de compriment­o. Foram bons tempos, apesar de tudo, ao contrário dos actuais em que apanhamos táxi por tudo e por nada, ainda que para nos deslocarmo­s a lugares muito próximos.

Termino desejando bom regresso a casa ao PCA Victor Silva e votos de sucessos a si e sua equipa de trabalho. Bem haja!

Foram bons tempos, apesar de tudo, ao contrário dos actuais em que apanhamos táxi por tudo e por nada, ainda que para nos deslocarmo­s a lugares muito próximos

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EDIÇÕES NOVEMBRO Um ângulo da antiga Marginal na baixa da cidade de Luanda

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