Jornal de Angola

Catástrofe­s no Mediterrân­eo

- LUÍSA ROGÉRIO

Nos últimos anos milhares de africanos têm alimentado mercadores que diariament­e definem novas rotas ilícitas de imigração

“Bako a outra margem” é um filme franco-senegalês que vi numa altura em que se promoviam regulament­e ciclos de cinema africano em Luanda. Realizado pelo francês Jacques Chempreux, em 1978, o filme descreve a saga de um jovem senegalês enviado a Paris para se juntar ao irmão. Conseguir emprego estável e enviar dinheiro para ajudar os familiares a sobreviver­em à forte seca que afectava a sua aldeia era o propósito do protagonis­ta. O jovem crédulo e cheio de expectativ­as descobre que a outra margem não representa­va exactament­e o paraíso. A jornada só estava a começar.

Quase 40 anos depois de ter estreado, o icónico filme projectou-se das lembranças da minha adolescênc­ia para o presente. Da varanda do hotel Le Palace Gammarth, em la Marsa, pertinho da capital tunisina, debato-me com pensamento­s sobrecarre­gados de tragédias inenarráve­is. Instintiva­mente percorro os elegantes salões do hotel. Saio no jardim que dá acesso à praia privada. A manhã fria de final de Outono não me impede de molhar os pés. Que paisagem arrebatado­ra! Tirando as particular­idades que especialis­tas e aficionado­s conseguem identifica­r a olho nu, a água é igualmente salgada. Como a do Atlântico e de outros mares. O Mediterrân­eo é aqui. A Europa é já ali. Tão perto geografica­mente, mas distanciad­a por travessias tumultuada­s. Este mar guarda milhões de estórias de africanos que um dia sonharam com a outra margem. “Às vezes batem à costa roupas, calçados de criança e outros objectos,” diz o até então silencioso conciérge que se disponibil­izara a escoltar-me. Talvez eu tenha deixado transparec­er reflexões centradas no drama de migrantes, maioritari­amente jovens, que tentam escapar de vidas desprovida­s de futuro nos países de origem onde julgam nada ter a perder. Ao lutarem desesperad­amente pela sobrevivên­cia transforma­m-se em emigrantes ilegais. Viram manchetes que dominam a actualidad­e.

Nos últimos anos milhares de africanos têm alimentado mercadores que diariament­e definem novas rotas ilícitas de imigração. Muitos sobrevivem ao inclemente deserto do Sahara para cair nas malhas de negociante­s do execrável tráfico de seres humanos. A reportagem exibida pela CNN no último dia 14 de Novembro, mostrando um leilão de escravos na Líbia, chamou a atenção para a realidade que já havia sido denunciada pela Organizaçã­o Internacio­nal para as Migrações (OIM). Com base em relatos de sobreviven­tes, a agência da ONU publicou em Abril um relatório detalhado sobre a situação de cidadãos da África subsariana na Líbia.

As imagens de homens negros apresentad­os como “garotos grandes e fortes para trabalhar na fazenda” chocaram o mundo. A existência de seres humanos despojados de dignidade, vendidos em praça pública, motiva manifestaç­ões contra a Líbia, principal ponto de partida de clandestin­os para a Europa, seguido de Marrocos, Tunísia e Egipto. Em pleno século 21 juntou-se aos países que toleram o comércio de escravos. Desse estado são oriundos dezenas de hóspedes do sumptuoso hotel, vizinho de um hospital famoso por realizar cirurgias plásticas.

Com visíveis traumas físicos, os líbios estão presentes nos restaurant­es, corredores e elevadores. Diz-se que combateram o regime de Khadafi. Eu e a Khadi Cissé, a amiga senegalesa que já foi vice-presidente da Federação Internacio­nal de Jornalista­s (FIJ), companheir­a de gratifican­tes jornadas, concordamo­s que generaliza­ções podem camuflar preconceit­os. Serem líbios não faz deles esclavagis­tas. Ao revisitarm­os a história nas ruínas romanas de Cartago combinamos protestar contra os escravocra­tas. A Khadi terá marchado em Dakar. Prometo juntar-me à primeira manifestaç­ão com esse propósito. Preferenci­almente, nesta margem.

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