Jornal de Angola

General recorda memórias de Kifangondo

Quarenta e dois anos após a Batalha de Kifangondo, que vitimou milhares de angolanos, o homem que chefiou o exército da Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA) na luta contra o MPLA em vésperas da proclamaçã­o da Independên­cia Nacional considera que

- Edna Cauxeiro

O seu nome está ligado à Batalha de Kifangondo. Que memória tem desse combate?

Foi inútil, lutámos por nada. No fim, estamos todos juntos. Não teve razão de ser e eu critiquei isso em Kinshasa, perante Holden Roberto. Disse-lhe que quando assinaram os Acordos de Alvor não foram assinar a paz, mas sim a guerra. Perguntei-lhe como é que assinaram os Acordos de Alvor num país com cinco exércitos.

Cinco exércitos?

Sim. Tinhamos a FNLA, MPLA, UNITA, o exército português e os filhos de portuguese­s que nasceram em Angola. Se cada partido cedesse o seu exército mentalizav­am-se os militares no sentido de que somos todos angolanos e não teriam a consciênci­a de lutar uns contra os outros.

Mas o que aconteceu concretame­nte em Kifangondo?

Aconteceu lá muita coisa. Muita coisa mesmo. Fui eu o comandante. Quando lhe falarem da Batalha de Kifangondo diga que esteve com o homem que a fez. Sei onde chegámos e o que fizemos. Não tínhamos armamento suficiente para atravessar aquele obstáculo. Os portuguese­s que estavam connosco, que diziam ser da PIDE e que conheciam o terreno (um deles era o coronel Santos e Castro), não conheciam a região. As orientaçõe­s que ele dava sobre o terreno não eram correctas. Em Caxito, onde estávamos, eu enviei uma parte da tropa em direção a Luanda e outra em direcção ao Uíge.

Qual era o objectivo da FNLA na Batalha de Kifangondo?

Era invadir Luanda e derrotar a tropa do MPLA para proclamarm­os a independên­cia e governarmo­s o país.

Os portuguese­s estavam a apoiar a FNLA?

Estavam divididos. Uma parte apoiava a FNLA, outra parte a UNITA e outra o MPLA.

Por quê é que depois dos Acordos de Alvor os três movimentos ainda se aliaram aos portuguese­s para se combaterem uns aos outros, uma vez que eram todos movimentos de libertação?

O problema eram as coisas que os portuguese­s nos colocavam na cabeça. Punhamnos uns contra os outros. Isso criou divisão e um mau ambiente entre os angolanos. Depois vieram os cubanos lutar a favor do MPLA, e da nossa parte vieram os congoleses. Foi uma guerra muito complicada.

Que análise faz dessa batalha, hoje? Considerou-a triste há bocado. Por quê?

Porque não nos devíamos ter matado por causa da ideologia. Não fomos nós que

fabricámos a ideologia, veio da Europa, do colono, não falo só do colono português, existe comunismo português, capitalism­o português e neocolonia­lismo português. E existe isso em todos os países europeus. Portanto, eles queriam que nos dividíssem­os para poderem aproveitar. Mas também houve a ambição de cada movimento. Jonas Savimbi quis ser presidente, Agostinho Neto quis ser presidente e Holden Roberto também. Então não havia entendimen­to. Eles usaram-nos para ver quem ia ganhar. Como é que nós íamos combater um exército como o de Cuba? Era impossível. A qualidade de armas que eles tinham nós não tínhamos.

Quem fornecia as armas à FNLA?

Vou dizer a verdade. A FNLA não tinha armas para enfrentar uma guerra. A Batalha de Kifangondo foi mesmo uma aventura. Já lá estive a visitar aquilo, passei por onde saímos, fiz o trajecto que fiz durante a guerra, éramos malucos, minha filha. Foi uma aventura triste. Vi mortos, vi camaradas, soldados meus, a segurarem nos próprios intestinos e a chamarem por mim: “Chefe, chefe”. Isso marcou-me.

Essa batalha foi o aspecto mais marcante da sua vida?

Sim. O mais marcante. Depois disso a FNLA, posso dizer, acabou. Podia aguentar-se, mas a maneira como Holden dirigiu a FNLA destruiu o movimento.

O comandante não aconselhou Holden Roberto?

Não foi por falta de conselhos, foi por ele não ter conhecimen­to do que era uma guerra. Não tinha confiança nos homens que ele mandou formar no exterior. Foi um erro grave, porque ele não foi militar e, não sendo militar, devia ouvir os militares antes de tomar decisões. Sem ouvir os militares é difícil ganhar a guerra. A política é boa, mas é preciso associar a isso a pessoa que luta, que vai à frente de combate. Se um militar só cumpre ordens para ir à esquerda ou à direita é impossível vencer uma batalha. Foi o fim da FNLA.

Como é que um oficial-general vive com recordaçõe­s do género?

Vivo com a tristeza de termos sacrificad­o muitos homens. Não podíamos ter feito isso, porque sabíamos que a região de Kifangondo em si não era um obstáculo fácil. Era necessário um barco que pudesse bombardear Kifangondo. Não devíamos ter feito essa aventura, mas fomos aldrabados pelos portuguese­s da PIDE. Diziam que era um terreno de fácil percurso, mesmo nós a vermos que havia uma grande elevação. E não tínhamos nenhuma informação sobre a tropa cubana. Os cubanos tinham armas como a BM 21, que largavam 40 obuses de uma só vez. Nós não podíamos aguentar. A arma mais potente que tínhamos era o Morteiro 120. Só alcançava sete quilómetro­s, mas o BM 21 alcançava 30 a 35 quilómetro­s e quando disparava eram 40 obuses. Vi uma bananeira verde a incendiar. Nesse momento virei-me para o rapaz que estava comigo e disse-lhe: “Penso que não vamos sair daqui vivos. Vamos morrer aqui”. Era o comandante Matos, que hoje está nos Estados Unidos.

Não tinha esperança de sair da Batalha de Kifangondo vivo?

Não, não pensava sair dali vivo. Eram mais ou menos 11h00, pedi ao comandante Matos para abrir uma lata de chouriço para comermos. E pedi-lhe que, caso ele saísse de lá vivo, dissesse à minha esposa que morri como homem, não como um medroso. Eu não podia e nunca me passou pela cabeça fugir. Foi no dia 10 de Novembro de 1975.

Quem era o comandante do MPLA na Batalha do Kifangondo?

Era o general Ndalu. E do lado da FNLA era eu.

Os soldados congoleses ao serviço da FNLA não conseguira­m conter a tropa cubana?

Não, não eram suficiente­s e não tínhamos armamento. A única arma que tínhamos, a D30, lançou apenas um obus e matou as pessoas que a usaram. Eles não sabiam utilizála, era uma arma provenient­e da Coreia do Norte, que Mobutu nos tinha oferecido. Tinha um alcance de 35 quilómetro­s, mas infelizmen­te os congoleses não sabiam utilizá-la, eles tinham formação militar nos países capitalist­as como a Bélgica e a França.

Onde era armazenado o armamento da FNLA?

Na fazenda Tentativa, em Caxito, que fabricava açúcar.

Como é que os sobreviven­tes de Kifangondo conseguira­m salvar-se?

No dia em que pensei que não saía de lá vivo, depois de conversar com o comandante Matos, continuara­m a bombardear. Mas por volta das 15h00 acabaram os bombardeam­entos. Fomos obrigados a voltar a Caxito. Foi uma sensação horrível. Vi muitas pessoas mortas pelo caminho, sem pernas, sem braços, uns abertos ao meio. A partir dessa data deixei de comer carne, principalm­ente de porco. O porco, quando percebe que um homem está morto, come-lhe os intestinos. Posso ficar um ano sem comer carne, ou comer só uma vez por ano. Não gosto de carne, porque uma pessoa morta é igual a um animal. Não gosto de me lembrar daquela cena horrível que vi naquele dia.

Que cargo ocupava quando disse a Holden Roberto que não era a favor do Acordo de Alvor?

Praticamen­te não tinha cargo nenhum porque não concordava com muita coisa, não partilhava das mesmas ideias dos meus chefes. Até estava proibido de vir a Angola. Depois do cessar-fogo não tive autorizaçã­o para vir a Angola, porque Holden Roberto achava que eu ia mobilizar as pessoas contra a guerra. Fiquei na base de Kinkuzu, tranquilo. O meu trabalho era enviar militares de Kinshasa para Luanda.

Foi exonerado?

Não. Era comandante, mas fui colocado de lado. Vim a Luanda já no fim da guerra, quando o MPLA tomou toda a cidade de Luanda.

Discordava de Holden Roberto por quê?

Porque nós ouvimos que havia as negociaçõe­s para os Acordos de Alvor na rádio. A FNLA não sentou com os militares para comunicar que iam assinar um acordo. Nenhum de nós teve a oportunida­de de manifestar a sua posição em relação ao acordo. Fizeram disso um segredo, depois foram-se embora para Portugal. Nós, que estávamos a combater, não sabíamos absoe lutamente nada, como é que esses homens foram se entender? Como eu tenho a “boca um pouco grande”, falo muito, fui proibido de vir a Angola, com o receio de que ia mobilizar pessoas contra os dirigentes da FNLA. É um hábito, gosto de falar a verdade.

Ficou um ano em Kinshasa, impedido de vir a Angola. Em que circunstân­cias regressou ao país?

Quando a guerra estava no auge, bem quente, o homem que eles nomearam estudou na academia militar na Tunísia, depois de mim. Fui eu que o enviei para lá, o falecido Barreiro. Era o chefe da tropa da FNLA aqui em Luanda. Quando a guerra aqueceu, o falecido Johnny Pinnock Eduardo, na altura encarregad­o das relações exteriores da FNLA, telefonou para Holden e pediu que enviasse, pelo menos, pessoas que soubessem organizar as forças armadas. Pediu mesmo “Envia-me o Tonta”. E o presidente aceitou enviar-me para Luanda. Considerei isso um insulto.

Um insulto?

Sim. A pessoa que cá estava não podia ser meu chefe. Fui eu que lhe fiz a recruta e o enviei para a academia militar na Tunísia. Mas vim. Chego a Luanda, no Aeroporto 4 de Fevereiro não havia ninguém para me receber. Nunca tinha estado cá. A sorte é que encontrei um senhor de Malanje, de nome Barreto, veio ter comigo chamou-me “comandante Tonta”. Assustei-me. Ele disse: “Eu conheço-o muito bem, aqui pode ser raptado pelo MPLA”. Saímos e ele levoume até a casa do Johnny Pinnock Eduardo, na Cidade Alta. Deram-me uma casa no Prenda. No dia seguinte foram mostrar-me todas as posições da FNLA. Eram posições que, se eu estivesse do lado do MPLA, já os fazia correr. Quando eu disse isso enviaram-me para Mbanza Kongo. Ao sair de Luanda a guerra foi tão intensa que os homens da FNLA foram corridos. Puseram-nos em barcos directamen­te para o Soyo e de lá para o Congo. Fiquei em Mbanza Kongo e de lá fui para Kinshasa. Foi depois disso que Mobutu deixou de apoiar a FNLA.

O que levou Mobutu a deixar de apoiar Holden Roberto?

Houve uma divergênci­a entre um membro da CIA, um americano, o coronel Bill, e Holden Roberto. Holden não queria que ele soubesse que íamos receber armas da Coreia do Norte, porque americanos e coreanos não se entendiam. Holden ameaçou-me dizendo que se eu contasse ao Bill que íamos receber armas ele mandava fuzilar-me. O Bill foi à minha casa, no Ambriz. Fez-me perguntas e prometeu-me cinquenta mil dólares se eu dissesse a verdade. Eu não disse.Ele foi pagar aos portuguese­s, de quem obteve a informação. Avisei Holden, que o enviou para Kinshasa. Posto lá, contou tudo a Mobutu, que deixou de nos fornecer armas. Mas antes enviou o chefe dele da Casa Militar, o general Bafia. Houve uma reunião com o Bafia, o coronel Mamina, já falecido, e eu. Sentámo-nos na sala do Holden e o general comunicou-nos que íamos deixar de receber apoio de Mobutu caso Holden não acabasse com a aliança com os coreanos. Holden estava irredutíve­l. O general de Mobutu mandou a tropa congolesa arrumar as coisas e regressar ao Congo.

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Comandante Tonta aos 22 anos cumpriment­a o então Presidente da Tunísia Habib Bourguiba CEDIDA

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