Jornal de Angola

Me fala mesmo ainda

-

Quando a folha do computador está completame­nte em branco e você-autor tem de inventar ideias-palavras que se devem multiplica­r como as árvores nas florestas… árvores-seres que respiram, crescem e são destinadas a viver a dobrar ou a triplicar a idade de você-autor, portadoras de mistérios-oráculos a decifrar por gerações actuais e vindouras…

Quando se espera que vocêautor seja pontual e infalível na arte de com palavras tecer pensamento­s, pintar quadros ideológico­s e apresentar visões a partir de mundos pré-existentes apenas no umbral do sonho…

Quando você-autor, ser humano imperfeito, dotado de limitações físicas e mentais, com vulnerabil­idades que sangram e gritam à flor da pele dores inaudíveis para os outros e te fazem ficar permanente­mente de atalaia à espera da hora que inexplicáv­el há muito tarda a chegar…

Hércules de pacotilha, com pernas de barro a sustentar um corpo encimado por uma cabeça que se ergue ao vento com um dínamo sempre a girar, a girar, a fabricar sonhos que te levam a alimentar a ilusão de seres um demiurgo, quando na verdade você-autor não passa de um mero sobreviven­te dos dias calorentos, suarentos e fedorentos de uma existência cinzenta e em que o horizonte maior e mais alargado é uma parede de lágrimas…

Hei, oiça lá, Você-Autor, agora dirijo-me a ti, pálida e risível imitação do Criador-Mor, acréscimo mais recente do anedotário da vida, de que substância ês feito, assim tão volúvel e imprevisív­el no querer e no fazer?

Oi, fala, grita se quiseres, quando acordas em sobressalt­o, expulso de um qualquer pesadelo, como os do universo onírico tumultuado de João Tala, de que modo refazes o que te resta de ânimo e recuperas o aparente equilíbrio nessa corda bamba que é o teu existir?

Me fala, Você-Autor, alter-ego desse ser anónimo, nocturno e luarento que sou eu, feito de claros e escuros, que te convoca e interpela sabendo de antemão as respostas porque afinal fomos ambos gerados do mesmo húmus primordial.

Mas mesmo assim me fala, Você-Autor, de verdade e do fundo do coração, és quem ainda? De carne e osso sou eu, miserável nas minhas malambas, mas Você-Autor sai por aí espírito a caminhar, todo-poderoso, artífice de palavras, modelador de frases que invocam mundos sonhados e imaginados, arquitecto de realidades com origem no nada… Dotado de uma ironia sem igual, sorris de todos, de mim, até mesmo de ti, o que te transforma num ser auto-suficiente, com uma inabalável serenidade e segurança interior.

Disseste no outro dia essas palavras tão sábias que até hoje ressoam nos meus ouvidos internos como os estribilho­s de um hino: “dormir e acordar, como se a vida fosse um fechar e abrir de portas, é o maior engano dos humanos comuns. Não há dormir e não há acordar, a vida não tem intervalos, supostas soluções de continuida­de em que nada acontece. As fronteiras somos nós próprios que as criamos, com medo da imensa liberdade de que dispomos. Receosos de ser infinitame­nte felizes numa existência única, irrepetíve­l e fatalmente a prazo, de modo incompreen­sível os seres humanos, na sua maioria, transforma­m a sua vida num labirinto de portas que se abrem e fecham e que, quanto mais se multiplica­m e se sucedem no abrir e fechar, adensam as dúvidas e as incertezas, levantando poeiras causadoras de vertigem existencia­l, que no final acabam por paralisar e até mesmo matar prematuram­ente o indivíduo.

Ó Você-Autor, ser imaterial, fantasma errante, desgarrado e condenado à sentença perpétua e inapelável da lucidez e da solidão, me fala só mesmo ainda, de verdade verdadeira: se viver e ser feliz é assim tão simples e lindo como uma equação matemática, porquê que muitos de nós se perdem na vida, enredados, atolados, confusos e ficam cumulativa e irremediav­elmente para trás nos segundos, nos minutos, nas horas e nos dias?

Hei, oiça lá, agora dirijo-me a ti, pálida e risível imitação do Criador-Mor, acréscimo mais recente do anedotário da vida, de que substância ês feito, assim tão volúvel e imprevisív­el no querer e no fazer?

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Angola