Me fala mesmo ainda
Quando a folha do computador está completamente em branco e você-autor tem de inventar ideias-palavras que se devem multiplicar como as árvores nas florestas… árvores-seres que respiram, crescem e são destinadas a viver a dobrar ou a triplicar a idade de você-autor, portadoras de mistérios-oráculos a decifrar por gerações actuais e vindouras…
Quando se espera que vocêautor seja pontual e infalível na arte de com palavras tecer pensamentos, pintar quadros ideológicos e apresentar visões a partir de mundos pré-existentes apenas no umbral do sonho…
Quando você-autor, ser humano imperfeito, dotado de limitações físicas e mentais, com vulnerabilidades que sangram e gritam à flor da pele dores inaudíveis para os outros e te fazem ficar permanentemente de atalaia à espera da hora que inexplicável há muito tarda a chegar…
Hércules de pacotilha, com pernas de barro a sustentar um corpo encimado por uma cabeça que se ergue ao vento com um dínamo sempre a girar, a girar, a fabricar sonhos que te levam a alimentar a ilusão de seres um demiurgo, quando na verdade você-autor não passa de um mero sobrevivente dos dias calorentos, suarentos e fedorentos de uma existência cinzenta e em que o horizonte maior e mais alargado é uma parede de lágrimas…
Hei, oiça lá, Você-Autor, agora dirijo-me a ti, pálida e risível imitação do Criador-Mor, acréscimo mais recente do anedotário da vida, de que substância ês feito, assim tão volúvel e imprevisível no querer e no fazer?
Oi, fala, grita se quiseres, quando acordas em sobressalto, expulso de um qualquer pesadelo, como os do universo onírico tumultuado de João Tala, de que modo refazes o que te resta de ânimo e recuperas o aparente equilíbrio nessa corda bamba que é o teu existir?
Me fala, Você-Autor, alter-ego desse ser anónimo, nocturno e luarento que sou eu, feito de claros e escuros, que te convoca e interpela sabendo de antemão as respostas porque afinal fomos ambos gerados do mesmo húmus primordial.
Mas mesmo assim me fala, Você-Autor, de verdade e do fundo do coração, és quem ainda? De carne e osso sou eu, miserável nas minhas malambas, mas Você-Autor sai por aí espírito a caminhar, todo-poderoso, artífice de palavras, modelador de frases que invocam mundos sonhados e imaginados, arquitecto de realidades com origem no nada… Dotado de uma ironia sem igual, sorris de todos, de mim, até mesmo de ti, o que te transforma num ser auto-suficiente, com uma inabalável serenidade e segurança interior.
Disseste no outro dia essas palavras tão sábias que até hoje ressoam nos meus ouvidos internos como os estribilhos de um hino: “dormir e acordar, como se a vida fosse um fechar e abrir de portas, é o maior engano dos humanos comuns. Não há dormir e não há acordar, a vida não tem intervalos, supostas soluções de continuidade em que nada acontece. As fronteiras somos nós próprios que as criamos, com medo da imensa liberdade de que dispomos. Receosos de ser infinitamente felizes numa existência única, irrepetível e fatalmente a prazo, de modo incompreensível os seres humanos, na sua maioria, transformam a sua vida num labirinto de portas que se abrem e fecham e que, quanto mais se multiplicam e se sucedem no abrir e fechar, adensam as dúvidas e as incertezas, levantando poeiras causadoras de vertigem existencial, que no final acabam por paralisar e até mesmo matar prematuramente o indivíduo.
Ó Você-Autor, ser imaterial, fantasma errante, desgarrado e condenado à sentença perpétua e inapelável da lucidez e da solidão, me fala só mesmo ainda, de verdade verdadeira: se viver e ser feliz é assim tão simples e lindo como uma equação matemática, porquê que muitos de nós se perdem na vida, enredados, atolados, confusos e ficam cumulativa e irremediavelmente para trás nos segundos, nos minutos, nas horas e nos dias?
Hei, oiça lá, agora dirijo-me a ti, pálida e risível imitação do Criador-Mor, acréscimo mais recente do anedotário da vida, de que substância ês feito, assim tão volúvel e imprevisível no querer e no fazer?