Um caso judicial ou tentativa de ajuste de contas ?
A natureza alegadamente judicial do caso que envolve o antigo Vice-Presidente angolano, na visão das autoridades judiciais portuguesas, e a componente também política do mesmo processo, segundo as autoridades angolanas, já foi e continua a ser alvo das mais variadas observações e análises, que se não vão esgotar eventualmente até ao fim do mesmo. Ao lado das duas posições assumidas por Portugal e por Angola parece crescer uma terceira perspectiva, a eventual tentativa de ajuste de contas por parte do "independente" poder judicial português.
Se por um lado é compreensível e aceitável a posição assumida pelo Governo do primeiro-ministro português, António Costa, segundo o qual o poder político não deve interferir no trabalho do poder judicial, não é menos conveniente o modo como as autoridades angolanas se agarram ao lado político do caso.
Sem pôr em causa a veracidade constante nos autos, além das diligências consubstanciadas no espírito e letra do "acordo judicial" entre Angola e Portugal, para as autoridades angolanas urge prevenir os precedentes que se podem abrir com a componente política do caso judicial em que está envolvido o antigo Vice-Presidente da República.
Razões para desconfianças pendem equilibradamente dos dois lados, contrariamente a ideia de que as autoridades judiciais portuguesas têm mais razões para desconfiar das suas homólogas angolanas. E para termos uma ideia de eventuais razões para que as autoridades angolanas, ao nível da justiça, pelo menos, levantem numerosas reservas, basta ler extractos da sinopse da obra "Sistema Político Português", da autoria de Manuel Braga da Cruz.
"São hoje notórios sinais de degradação do nosso sistema democrático representativo. Os cidadãos afastam-se da vida política, perdem a confiança nas instituições políticas. Aumentam o abstencionismo eleitoral, e o défice de participação. Os partidos políticos afastam-se dos cidadãos e da sociedade, e enfeudam-se cada vez mais ao Estado. O parlamento representa mal a sociedade e legisla contra a opinião pública. Existem problemas de instabilidade governativa. Os governos têm dificuldade em impor-se perante interesses instalados (...)", constam do referido fragmento. Repita-se que a descrição resumida acima, retrato do actual estado da sociedade portuguesa no que a perda de confiança nos políticos e a descrença nas instituições dizem respeito, abonam menos e acentuam desconfianças. Se acrescentarmos a isso o desejo de ajustar contas por parte de algumas entidades radicais ligadas ao PS, entrincheiradas no "independente" poder judicial, o Estado angolano pode ter razões que a razão judicial e política combinadas aconselham a levantar reservas.
Não há dúvidas de que o caso do antigo Vice-Presidente assume contornos políticos inegáveis, havendo mesmo quem vislumbre nesta cruzada uma espécie de oportunidade que não pretende ser abandonada por alguns sectores do PS junto do sistema judicial para pôr em marcha o ajuste de contas.
Afinal de contas, o PS, partido fundado por Mário Soares e companhia nunca se rendeu ao facto de, relativamente à Angola, ter feito apostas erradas desde 1975 até ao auge do conflito armado. Ironicamente apesar de reunirem no seu histórico um passado comum ligado ao marxismo e comunismo, bem como hoje fazerem parte da mesma família política, o PS e o MPLA caminharam em lados opostos durante a fase do conflito armado em Angola.
Durante aquele período, o malogrado fundador do PS, sobretudo enquanto Presidente da República portuguesa, fez tudo inclusive "lobby" junto do Presidente norte-americano, Bill Clinton, para que adiasse o reconhecimento de Angola, no início da década de noventa. Não há dúvidas de que parte do seu legado, mesmo com as cosméticas viagens dos últimos anos do seu mandato a Angola e entrevistas em que se referia com algum equilíbrio sobre as autoridades políticas angolanas, prevalece ainda como filosofia de actuação.
Mudaram-se alguns tempos e mudaram-se algumas vontades, parodiando aqui Luís Vaz de Camões, mas não há dúvidas de que resquícios residuais que alimentam velhas animosidades parecem prevalecer.
Por isso, não parece exagerado encarar o actual problema, somente judicial na visão do poder político em Portugal, e também político na concepção do poder político em Angola, como uma tentativa de alguns sectores mais radicais do PS, estimulados pelo Bloco de Esquerda, de realizarem o ajuste de contas contra entidades angolanas.
Em todo o caso, é bom que as autoridades angolanas não sejam apanhadas a defender a inviabilização do processo em si, sem prejuízo para a componente judicial que, esperamos todos, não sirva como o prenúncio de perseguição política contra entidades políticas angolanas.