Profissionais a tempo inteiro
Enquanto uns festejam, milhares de profissionais deixam a casa para cumprir mais um dever. No dia de Natal e da passagem de ano todo mundo quer estar com a família, mas nem todos têm a mesma sorte por força das circunstâncias
Quadra festiva. Milhares de profissionais estão fora das suas casas, longe das famílias e amigos, por um bem maior. São autênticos missionários que colocam os seus interesses para o segundo plano. A subinspectora Lussucamo Arlete Alfredo e o agente de intervenção Martins Mufuma são exemplos. Ambos são do corpo de bombeiros do Kilamba-kiaxi.
A unidade está cheia e agitada, pelo menos até ao princípio da noite sem registo de incêndio ou outro sinistro que exigisse a presença do corpo de bombeiro. Ambulância e carros de extinção de incêndios e de resgate estão na posição de saída. Homens mulheres de farda azul, agrupadas em ilhas, apresentam-se em prontidão. O inesperado anda à espreita, sobretudo à noite.
Enquanto uns festejam, estes dois profissionais deixaram os familiares em casa para cumprir mais um dever. Há dez anos no serviço de bombeiro, Lussucamo Arlete, 35 anos, diz que todos os anos não toma a ceia de natal com a família.
Com quem está o filho? E o marido já aceita a ausência? “O meu filho tem cinco anos e passa com a minha mãe. O meu marido é também meu colega e, obviamente, compreendemos”.
O agente Martins Mufuma não tem a parceira na mesma área de trabalho, mais ainda assim a sua ausência no natal e passagem de ano é também compreendida pelos cinco filhos. “Também fazemos entender a família sobre a nossa missão e explicar que é daí onde saí o pão”, acrescenta o agente, que tinha a boina mais prostrada à direita.
Quer Lussucamo quer Martins gostam do que fazem e a partir da voz capta-se esta firmeza. “Já vi muita coisa”, conta a subinspetora Lussucamo Arlete com uma voz minúscula, aportando o boné sobre à cabeça.
“Outra vez, fomos resgatar uma criança numa lagoa, quando tentamos puxar pelas mãos a pele desfez-se. Chorei”, lembra com um semblante fechado o abalo que presenciou nas primeiras semanas da profissão.
A jovem bombeira é hoje uma mulher destemida e imbuída de mil razões para se manter na profissão. Todos os anos e com o apoio da área logística fazem uma ceia de Natal e passagem de ano.
Os efectivos também trazem, depois de concertação, um churrasco, sumos e gasosas para confraternizar.
São 19h00, vários cones separam as faixas de rodagem na estrada do Patriota. Três polícias de colete laranja e apito na boca. Eles acabam de receber uma frugal refeição para ceia de Natal das mãos do presidente de uma associação de motoqueiros, turismo e solidariedade. Carlos Oliveira é o presidente da associação Papoite que, com um grupo de membros em motas de alta cilindrada, passava de posto em posto da Polícia de trânsito, distribuindo refeições. “Esta é uma forma de reconhecimento do trabalho árduo dos agentes que estão na rua, longe da família, para zelar pela segurança”.
O inspector Euler Matadi, oficial de Comunicação e Imagem do Comando Provincial de Luanda, está a acompanhar a oferta em todos os postos.
O jovem inspector já não passa a quadra festiva com a família há 13 anos, altura que entrou na Polícia Nacional. “No princípio a família não reagia bem, mas hoje até apoia”.
Ele acredita que os filhos ainda sentem a sua ausência nesta data, mas compensa nos dias posteriores e “sempre explicando a natureza do trabalho que o pai faz”.
“Não tinha noção quando entrei para a polícia, que ficaria fora da família nestas datas. A polícia é uma grande família, onde encontramos amparo. Nestas datas temos uma confraternização singela.
O agente de terceira classe Porfírio Luís tem uma tigela composta de bacalhau e batata para a ceia. Não vai ter como ir à unidade confraternizar com o colegas. Há três anos na Polícia, o agente sabe desde a instrução que, nestas datas, a doutrina na corporação obriga a trabalhar para garantir a ordem e segurança dos cidadãos.
“O que mais marca, nestes momentos, são acidentes”, frisa, para aconselhar as pessoas a ficarem em casa com a família, ao invés de procurarem caminhos tortuosos.
Porfírio conta que a esposa e os filhos já estão acostumados e sabem que o trabalho da Polícia é proteger todas as famílias.
Como nos bombeiros, os agentes da Polícia Nacional também concertam para não faltar uma ceia de confraternização.
O Hospital Municipal da Samba tem a sala do banco de urgência com apenas duas pacientes. Otília Cambundo, 43 anos, é catalogadora há dois anos. Ninguém vai ao médico sem passar por ela. Está sozinha por trás de um balcão. A idosa de panos, que está sentada na primeira cadeira, esperava pelo resultado dos exames.
A segunda mulher, dos seus quase 50 anos, informou a catalogadora Otília que bebeu uma água estranha e estava com náuseas. De indumentária azul, Otília anota à pressa o nome, idade, peso. E acompanhou-a de seguida até a sala da médica. Muito atenciosa, um atendimento incomum em estabelecimentos públicos. A catalo-
gadora conta que é formada em enfermagem, mas infelizmente o seu enquadramento teve erro, colocando-a como catalogadora. Por isso, nos dias de folga trabalha como enfermeira numa clínica. “Trabalho com público, gosto do que faço e as pessoas devem ser bem atendidas.”
Com quatro filhos, diz que o marido é pacífico e, desde cedo, ajudou a cuidar dos filhos quando ela estivesse de trabalho. “No dia de Natal todo mundo quer estar com a família, mas quando está escalado tem de trabalhar. Tem de ver a família no dia seguinte”, explica, fazendo uma pausa para atender uma mãe que trazia uma criança ao colo. Como estava a trabalhar sozinha, Otília desconhecia o que estava a ser preparado no refeitório para a ceia dos trabalhadores. “Temos tido uma surpresa e acredito que o refeitório fará alguma coisa e os turnos também organizam alguma coisa”.
Lourenço Jorge, 47 anos, é enfermeiro há 24 anos, hoje é o supervisor da unidade. Explica que a família sabe que, nos dias de festas, prefere estar no local de trabalho do que em casa. “Gosto muito do que faço e mesmo que não estivesse escalado, trocava com um colega. Gosto de ficar com a família, mas nestas datas precisamos de ter muita atenção com os nossos utentes”.
É mesmo uma profissão de risco. Quer na sala do banco de urgência, quer no seu gabinete observa-se inúmeros mosquitos a circularem de um lado para outro. O enfermeiro Lourenço diz que anda todas as enfermarias para apurar a prontidão dos técnicos. “Aqui chegam feridos, pessoas com outras patologias, pessoas embriagadas que precisam de nós”, enumera, demonstrando um amor profundo pela profissão.
“Tenho os pacientes como meus familiares e, nestas datas, se fico em casa, receio que haja algum desfalque de pessoal, por isso prefiro trabalhar. Os meus filhos e a esposa estão acostumados.”
Apesar das doenças tropicais, durante a quadra festiva é comum os casos de acidentes. O enfermeiro conta que circula muito no banco de urgência para salvar vidas, quando morre alguém no meu turno, o meu dia fica estragado.“No Natal, os enfermeiros devem dar carinho aos pacientes”, disse Lourenço Jorge, que recomenda à população, e em particular aos hipertensos, uma dieta saudável durante a quadra festiva.