As manifestações no Irão e leituras desorientadas
As populações iranianas, das mais bem preparadas academicamente no Médio Oriente e habituadas a manifestarem-se, não precisam da mão de agências de inteligências estrangeiras
Numerosas comunidades manifestam-se em todo o mundo e lembro-me inclusive de um professor do curso de Relações Internacionais que, repetidas vezes, não se cansava de dizer que as causas dos conflitos no mundo se devem essencialmente aos direitos das minorias. E de facto, vimos isso em França, onde os jovens de origem magrebina, franceses de terceira e quarta geração, que se insurgiram em cidades da França, com saldo de mortes, ferimentos e destruição de bens públicos. Não se ouviu, na altura, nenhuma reacção de Bruxelas, de Londres e muito menos de Washington, para que as autoridades francesas tivessem em linha de conta os direitos dos manifestantes, que tinham sido considerados por Paris como arruaceiros e criminosos.
Ao nível do médio oriente, numerosas manifestações tiveram lugar e não é necessário lembrar a famosa e tristemente célebre “Primavera Árabe”, mas recordar apenas as tentativas recorrentes de comunidades minoritárias em Estados, árabes e não árabes, e nas monarquias árabes. As manifestações de comunidades xiitas, nalguns Estados da região, têm sido duramente reprimidas, assim como as comunidades árabes, mesmo sendo nacionais têm um tratamento diferenciado em países onde se encontram em minoria. Por exemplo, em Israel, as comunidades haredim, judeus ortodoxos que se negam a cumprir serviço militar, manifestam-se permanentemente e com resultados nem sempre pacíficos.
No Irão, as populações saíram às ruas em numerosas cidades para protestar, um acto que em respeito às leis locais, foram consideradas de normais pelo próprio Presidente do país, Hassan Rouhani, que reiterou o direito dos iranianos de se manifestarem livremente. Infelizmente, algumas destas manifestações naquele país foram além da simples exteriorização de preocupações ligadas a economia, desemprego, inflação. Os excessos não podiam deixar as autoridades de braços cruzados, razão pela qual intervieram para repor a legalidade.
Estranhamente e de forma atípica, o mundo testemunhou alguns líderes mundiais a interferirem nos assuntos internos do Irão, interpretando inclusive as manifestações como demonstração da população em mudar o regime. Mas que populações representam aquelas, as que saíram pelas ruas em várias cidades, num país de mais de 80 milhões de habitantes ?
As manifestações das populações, em maior ou menor dimensão, fazem parte dos Estados modernos e contrariamente a leituras simplórias vale lembrar que as populações iranianas que saíram às ruas o fizeram porque são livres. De outro modo, num regime austero e totalitário, nem às ruas sairiam para manifestarem a sua insatisfação para com o Governo.
E por outra, parece completamente sensata a posição assumida pela Rússia, que chegou a comparar as manifestações no Irão com o que sucede e sucedeu recentemente nos Estados Unidos, levando o embaixador russo na ONU a “encostar” na parede a sua homóloga americana.
“Por exemplo, Nikki Haley pode compartilhar a experiência dos Estados Unidos no esmagamento de protestos das minorias, detalhando a forma como, por exemplo, ocorreram as prisões em massa em Ferguson e a forma como sufocaram o movimento Occupy Wall Street ?”, interrogou o embaixador russo na ONU.
Há muito que as manifestações das comunidades minoritárias, sobretudo a comunidade negra, nos Estados Unidos têm sido duramente reprimida e a existência de movimentos como “Black Lives Matter” espelham bem a realidade sobre as manifestações e perdas de vidas naquele país.
As manifestações no Irão são completamente normais num país em que, há quarenta anos, as populações não mediram esforços para sair à rua para derrubar a então monarquia do Xá Reza Pahlevi e contribuir para a instauração da teocracia islâmica que governa até hoje o país. E ao contrário do que algumas vozes alegam, eivadas de desconhecimento e alguma estupidez, tal como em França, nas monarquias árabes do Golfo e inclusive nos Estados Unidos não houve mão da CIA para as pessoas saírem às ruas, nada indica que esta agência esteja por detrás das manifestações no Irão. As populações iranianas, das mais bem preparadas academicamente no médio oriente e habituadas a manifestarem-se, não precisam da mão de agências de inteligências estrangeiras, como alguma visão míope parece pretender fazer crer. Mas é normal que leituras desorientadas e interpretações obscuras das teorias de conspiração leve a ver fantasmas em tudo quanto sejam levantamentos populares, minimizando completamente a capacidade de iniciativa de uma população, instruída e bem ocidentalizada, como a iraniana.