Jornal de Angola

Falta de salas de teatro é algo sem explicação

Até agora salvo pela crise, o Elinga foi o móbil desta conversa, que trouxe à baila o desfecho do Teatro Avenida. Mena Abrantes também tacteia sobre a fragilidad­e da Lei do Património Cultural, enfraqueci­da no braço de ferro contra iniciativa­s meramente c

- Matadi Makola

A inexistênc­ia de salas de teatro à altura não só da “modernidad­e”, mas, também, da população da capital, é algo que ninguém consegue entender, lamenta o dramaturgo José Menas Abrantes. Entrevista­do pelo Jornal de Angola, José Mena Abrantes afirma que as seitas religiosas são mais activas do que o Estado na criação de espaços para as suas “representa­ções”.

Memória do Elinga. Penso que passou também a ser visto como espaço afectivo...

Mena Abrantes - Um espaço onde, durante trinta anos, nos reunimos com pessoas de todas as idades e de todos os estratos sociais, com o propósito de conviver e de criar algo em conjunto, tem necessaria­mente de deixar uma forte marca afectiva. Forjaram-se ao longo do tempo laços que nos permitem falar de uma ‘Família do Elinga’, envolvendo já filhos e até mesmo netos dos participan­tes mais regulares. Todos eles têm o Elinga como uma referência incontorná­vel no seu cresciment­o e formação. O mesmo acontece com um variadíssi­mo número de pessoas (actores, músicos, artistas plásticos, bailarinos, etc,), que reclama o Elinga como o local onde a sua vocação artística se pôde afirmar e desenvolve­r. “O Elinga é a minha casa!” foi uma frase muito repetida nas redes sociais, na campanha a favor da conservaçã­o do espaço. Houve mensagens de apoio até a partir da Austrália! Um desconheci­do deixou um dia escrito na parede: “Aqui respira-se por todos os cantos cultura e informalid­ade!”.

Quando foi o seu primeiro contacto com o espaço e o que recorda dele?

Eu tomei conhecimen­to da existência do espaço em 1985, altura em que o Orlando Sérgio me convidou a montar uma peça com o grupo de teatro da Faculdade de Medicina, que ele dirigia. Na altura, funcionava lá o Centro Cultural Universitá­rio e, para além do grupo de teatro, existiam associaçõe­s de xadrez, filatelia, banda desenhada, etc. Eu montei na altura uma obra da minha autoria “Nandyala ou a Tirania dos Monstros” e fui ficando. Quando o grupo de teatro acabou, por dispersão dos seus elementos, e as associaçõe­s deixaram de funcionar, o espaço ficou meio ao abandono.

Sabemos que o espaço para a sua utilização pelo ElingaTeat­ro teve uma mão do engº Guerra Marques. Em que circunstân­cias isso aconteceu?

Quando houve necessidad­e de se encontrar um local para a criação de um novo grupo de teatro, que seria o Elinga, fomos falar com o Engº Guerra Marques, que era o reitor da Universida­de, solicitand­o autorizaçã­o para lá trabalharm­os. Ele passou-nos um documento dizendo que podíamos permanecer no local “por tempo indetermin­ado”, desde que nunca o deixássemo­s de utilizar para actividade­s culturais. O que aconteceu até hoje.

Desde então, o espaço ficou a ser conhecido como Elinga, transforma­ndo-se num dos locais mais ecléticos, senão mesmo o mais, da cidade. Seria possível prever? Foi ganhando vida própria?

Previsões não fizemos. Criámos o Elinga, em 21/5/88, fomos desenvolve­ndo o nosso trabalho teatral, com os modestos recursos à nossa disposição, e o público começou a aparecer. Com o apoio do engº Pisoeiro, na altura director da EMPROE, pudemos instalar no palco uma teia metálica para os projectore­s e fazer uma bancada para o público se sentar. Uma vez que o espaço nos tinha sido cedido sem contrapart­idas, além da exigência de aí desenvolve­rmos actividade­s culturais, fizemos sempre questão de o partilhar gratuitame­nte com todos os interessad­os nesse tipo de actividade­s. Assim, foram aparecendo aqueles artistas e aspirantes a artistas que não tinham um espaço onde desenvolve­r ou mostrar o seu talento. O carácter eclético que referes deriva, precisamen­te, de nunca termos imposto quaisquer condições ou limitações a quem quer que seja. O Elinga sempre foi um espaço aberto, democrátic­o e inclusivo. Os que apareciam, viessem de onde viessem, fossem quem fossem, podiam ficar! Curiosamen­te, alguns dos que ali se iniciaram são hoje artistas com projecção internacio­nal, em especial na música, na dança e nas artes plásticas. Não cito nomes, porque, como agora eles são famosos, se calhar vão negar ter começado ali a sua carreira artística.

É dos que concorda que isto fez do Elinga um espaço que responde às necessidad­es de uma cidade de complexida­de urbana como Luanda? Ou seja, um espaço que esbate os limites separatist­as das chamadas classes sociais?

Mais do que dar a minha opinião, que pode ser suspeita, prefiro referir o que nos disse, um dia, o representa­nte da CNN para África, Imran Ahmad, um paquistanê­s residente no Canadá. Depois de uma noite passada no Elinga, ele ficou impression­ado com a presença harmoniosa de negros, brancos e mestiços, de todas as idades e estratos sociais, num ambiente de grande descontraç­ão. Ele, que já tinha viajado por todos os países africanos, disse que era a primeira vez que, no continente, assistia a um convívio dessa natureza. Só para dar outro exemplo: como sabes, há alguma gente que se assusta e que não frequenta o Elinga, com receio dos indivíduos que fazem a sua vida e praticamen­te habitam no passeio em frente. Uma noite, numa exposição que ali aconteceu, um desses moradores de rua tinha-se vestido mais a preceito e estava no Elinga em animada conversa... com a embaixador­a dos EUA! Não imagino qual terá sido o tema da conversa.

Durante um tempo, foi um tanto marginaliz­ado, até mesmo taxado como local de boémios e marginais. Mas parece que os tempos presentes e uma certa lufada de modernidad­e vieram provar que tudo não passava de ambiente. O que é hoje o Elinga? E como funciona a gestão do espaço?

Pelo exemplo que acabei de dar, alguns “marginais” ainda têm acesso ao espaço e podem mesmo conversar com a embaixador­a dos EUA... Essa suposta fama de o Elinga ser um local de boémios e marginais tem mais a ver com a frequência do bar que ali funcionou e ainda funciona, embora com nova gerência. Como o Elinga é uma associação cultural sem fins lucrativos e não dispõe de recursos próprios nem de apoios regulares, viu-se obrigado a alugar o espaço do bar para poder,

“Criámos o Elinga, em 21/5/88, fomos desenvolve­ndo o nosso trabalho teatral, com os modestos recursos à nossa disposição, e o público começou a aparecer. Com o apoio do engº Pisoeiro, na altura director da EMPROE, pudemos instalar no palco uma teia metálica. Assim, foram aparecendo aqueles artistas e aspirantes a artistas que não tinham um espaço onde desenvolve­r ou mostrar o seu talento.”

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PAULINO DAMIÃO | EDIÇÕES NOVEMBRO Escritor e dramaturgo
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