Angola versus Portugal o “caso Manuel Vicente”
Como o prometido é devido, aqui estou de volta para não apenas pensar direito, mas também, tentar com humildade e respeito pelas opiniões alheias, escrever direito ainda que por linhas tortas e, desta feita, concluir a minha abordagem sobre o muito badalado “caso Manuel Vicente” que se transformou hoje numa vexata quaestio nas relações entre Angola e Portugal, muito por culpa de um grupo minoritário (de pessoas) de cá e de lá, mas influente na formação da opinião pública, que procura pôr em causa o interesse maior e sublime dos dois povos irmãos, unidos por relações seculares, históricas e de consanguinidade, razão pela qual;
Permitam-me, à guisa de introdução e para tornar assaz inteligível a minha abordagem plena sobre o caso em pauta, esclarecer que não é minha intenção apreciar neste artigo de opinião o mérito da causa, por razões deontológicas e de honestidade intelectual, face ao meu desconhecimento de todos os elementos de prova carreados nos autos, mas apenas me proponho a analisar e a emitir uma opinião jurídica sobre a tramitação processual, começando pela observância dos pressupostos processuais, quer de existência, como de validade do mesmo (processo), situação visível e ao alcance de qualquer analista e especialista em matéria processual penal, em sede do Direito Processual Penal Português, num primeiro momento e, num segundo momento, em sede do Direito Processual Penal Angolano, e para harmonizar as eventuais divergências entre as duas realidades jurídicas em concurso, lançarei mão ao Direito Internacional Público, em última instância, ou seja, verificarei se foram ou não observadas as regras processuais básicas para sustentar a legalidade do andamento do processo em apreço, bem como se foram respeitadas as regras estabelecidas pelo Acordo Bilateral Sobre a Cooperação Jurídica e Judiciária existente entre Angola e Portugal e pelos Acordos Multilaterais ou Convenções Internacionais de que os mesmos (Estados) são partes, uma vez que;
Integrando as normas desses instrumentos jurídicos internacionais as suas ordens jurídicas (internas), caso as mesmas sejam chamadas a colação para resolver qualquer situação obscura no tratamento de questões jurídicas conexas no processo em análise, estas (normas) sobrepõem-se às leis nacionais, devido a sua natureza infraconstitucional, isto é, devem ser observadas em primeiro plano e, por isso, de cumprimento obrigatório para todas as instituições dos Estados partes, incluindo para os tribunais, na qualidade de operadores do direito e da justiça, como nos diz a própria Constituição da República Portuguesa no seu artigo 8.º, n.º 2, cito, “as normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas vigoram na ordem jurídica interna …” e;
Como consequência, todos os casos submetidos à apreciação e decisão das suas instituições da administração da justiça e que reúnam os requisitos para efeito, devem ser tratados em estrita observância desses acordos, o que não se verifica no caso em apreço, como adiante demonstrarei;
De igual modo, penso ser necessário, para melhor compreensão do que a seguir abordarei, clarificar que o conceito de soberania tem uma natureza híbrida ou mista, isto é, tem uma componente política e uma componente jurídica, até porque se ela (soberania) reside no povo, é através de um processo democrático, essencialmente político, mas regulado pela lei, que o poder soberano é transmitido aos políticos que, o (povo) representam e a (soberania) exercem em seu nome, daí que; (Vide artigo 3.º, da Constituição da República de Angola e 3.º, da Constituição da República Portuguesa).
Formalmente, o desenho do conteúdo e fronteiras do poder soberano do povo vem plasmada na Constituição, através da qual se determina a sua dimensão e limites, formas e modo do seu exercício, bem como as consequências políticas e jurídicas, resultantes da sua violação, por isso;
Quando é chamada para este debate académico a questão da necessidade do respeito da soberania do Estado angolano, ou de qualquer outro (Estado), não se deve entender que há aqui alguma intenção de se politizar o mesmo (debate académico), embora se reconheça, e como disse e bem Aristóteles, “o homem é por natureza um animal político”, para dizer que, toda e qualquer acção humana encerra uma componente política, mas, ainda assim, qualquer coincidência entre as outras dimensões do conceito de soberania e a sua dimensão política é tão-somente no âmbito do sentido lato da palavra (conceito de) política pois, no sentido restrito deste ultimo conceito, não há qualquer coincidência, e é na perspectiva da primeira hipótese que aqui ela é chamada à colação;
Outrossim, entendo que, para melhor enquadramento e compreensão da questão em apreço, devemos realizar uma análise em três vertentes, ou em três dimensões, ou seja, é preciso fazer a nossa análise em sede das três realidades jurídicas distintas, mas que concorrem para uma apreciação e decisão do caso, a saber:
1º- Em sede do Direito Português, num primeiro momento, por ser o local onde eventualmente ocorreram os factos objecto deste processo e onde se encontram a maior parte dos participantes processuais;
2º- Num segundo momento, em sede do Direito Angolano, por se tratar de uma jurisdição que se manifesta potencialmente apta a resolver o caso em apreço, ainda que parcialmente, no sentido de resolver parte do problema, face à conexão com o crime de branqueamento de capitais, como crime-base ou nuclear do objecto do processo em referência, bem como, em razão da nacionalidade e da localização geográfica de um dos participantes processuais e também por força dos instrumentos internacionais de cooperação jurídica e judiciária existentes entre os dois países, daí que;
3º- Em última instância, devemos fazer uma análise do caso em sede do Direito Internacional Público, como instrumento mediador dos eventuais conflitos existentes entre as jurisdições nacionais em concurso.
A analise terá sempre que começar pela qualificação dos factos, culminando com a subsunção dos mesmos (factos) aos tipos legais de crimes previstos na lei penal portuguesa, já que os factos que emprestam conteúdo material relevante ao objecto do processo em apreço, em princípio, ocorreram no território de Portugal, como mais adiante veremos com muito mais propriedade, para de seguida se determinar o tribunal competente em razão da matéria e, de igual forma, em razão do território, sob pena de partirmos de premissas erradas e;
Chegarmos a conclusões jurídicas erradas, bem como serem apresentadas soluções inviáveis ou inoportunas do problema e até mesmo “suicidas” do ponto de vista político para o Estado angolano, como até agora alguns estudiosos do direito vão sugerindo ao Executivo angolano no sentido de este agir em flagrante violação da sua própria Constituição, mais concretamente, dos seus artigos 67.º, n.º 2, 70.º, 127.º, n.º 3 e 131.º n.º 4, quando propõem entregar Manuel Vicente à justiça portuguesa para ser julgado, a pretexto de este provar a sua inocência, esquecendo-se os mesmos (estudiosos) que, quer em sede do ordenamento jurídico angolano, quer do ordenamento jurídico português, as pessoas, independentemente da sua qualidade política, social, económica, cultura, religiosa e outras, ex vi artigo 23.º, da Constituição da República de Angola (adiante designada por CRA) e 13.º, da Constituição da República Portuguesa (adiante designada por CRP), gozam da presunção da inocência, logo, quem tem que fazer prova de que aquele cidadão, no caso concreto, o angolano (Manuel Vicente) e os outros arguidos portugueses cometeram os crimes de que vêm acusados, é o Ministério Público Português, na qualidade de titular da acção penal por excelência (Vide artigos 67.º, n.º 2, 186.º da CRA, 1.º e seguintes do Decreto-Lei 35.007, de 13 de Outubro de 1945 e 32.º, n.º 2, 219.º, da CRP e 48.º, do Código de Processo Penal Português, adiante designado por CPPP), já que;
À luz da Constituição angolana, assim como da Constituição portuguesa, para que todos nós compreendamos que não se trata de um argumento de natureza política do Estado angolano para defender “um criminoso”, como algumas pessoas mal entendidas na matéria propalam aos quatro ventos, quando se evoca a necessidade do respeito da soberania de cada um dos Estados envolvidos, quer em sede do direito português, caso a situação fosse inversa, v.g., cidadão português procurado pela justiça angolana, mas que se encontra em território português, Angola, para além de que não deve evadir a soberania do Estado português para produção da prova, também não deve exigir que o Estado Português entregue o seu cidadão, se a sua Constituição o não permitir, ou que ele voluntariamente se apresente perante a justiça angolana pois, a concretização desta intenção passa necessariamente pela aplicação do instituto da extradição daquele (cidadão), possibilidade vetada pela Constituição de qualquer dos dois países, ex vi artigos 70.º, da CRA e 33.º, da CRP, o que contraria a noção do conceito da boa administração da justiça na perspectiva dos fundamentos da decisão proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa que negou o pedido de transferência do processo para jurisdição angolana, por sugestão do Ministério Público Português na sua promoção ao requerimento da defesa de Manuel Vicente, em relação ao seu constituinte, (assunto que será desenvolvido em sede própria), cujos desenvolvimentos e contornos em sede do direito português trataremos na edição seguinte deste jornal.