Jornal de Angola

Serviços adiam cidadania a nacionais e abrem brechas às irregulari­dades

Para justificar as falhas na entrega célere do Bilhete sde Identidade, o Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos alega todos os anos que está em curso o processo de informatiz­ação e modernizaç­ão dos serviços e falta de material gastável

- Rodrigues Cambala

Um homem corpulento entra em ataque de nervos no momento em que digere as palavras de um guarda do SIAC de Talatona: “Quem não foi atendido volte amanhã”.

O rosto assombrado leva o homem a soluçar de tanta indignação. Já sem solução, mantém-se teimosamen­te firme na fila, fitando levemente para a mulher com o filho ao colo, e o rosto eriçado pela noite mal dormida à porta do SIAC. Abana a cabeça da direita para à esquerda, ao mesmo tempo que dispara favas para todos os lados. Celina Lukombo é a esposa do homem que se recusa a falar por estar furioso. Ele falseia um sorriso para dissimular o olhar penetrante que direcciona para o guarda de camisa branca e calça cinza enfraqueci­da.

“Chegamos, aqui, às 22 horas e somos o número 25 e não podem dizer que já fechou”, desabafa Celina numa voz menos colérica.

Não fosse a noite perdida, as picadas de mosquitos e o frio ardente, talvez a dor de Celina seria menor depois de ouvir que a área de registo de nascimento só atende até 20 pessoas por dia. “Isso não se faz. O meu marido faltou ao trabalho e agora dizem que não podem atender. Assim não está certo.”

“Assim ficamos como?", pergunta a mulher que vê o seu resmungo engrossado por outras vozes. “Tratar documento é muito difícil. Este país é muito desorganiz­ado. Isto é puro desrespeit­o aos cidadãos”, atiram literalmen­te os populares, deixados de fora do registo. São perto de 50 pessoas que não podem fazer o registo dos seus filhos. Mesmo fazendo finca pé, de nada os valeu.

Prata tem também o filho de nove meses ao colo. Respira fundo. Mal consegue separar a fúria da cabeça, faz um esforço para falar. Balbucia repetidas vezes na medida que solta as palavras. Tal como Celina, Prata não sabia da modalidade do SIAC e ambos admitem que a justificaç­ão dos guardas não colhe. “Os guardas dizem que cumprem ordens e não podem fazer nada”. Só que Prata não esconde a insatisfaç­ão por uma razão: “é o número 21”. Ou seja, o vigésimo foi atendido.

Dados mundiais, publicados pelo Unicef indicam que uma em cada três crianças com menos de cinco anos de idade não tem existência oficial, o que totaliza 230 milhões de crianças.

Há dias que as pessoas passam a noite ao relento para poder tratar a cédula de nascimento ou Bilhete de Identidade nas Conservató­rias e nos Postos de Identifica­ção. Todos os anos ocorrem falhas e o Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos alega sempre estar em curso o processo de informatiz­ação e modernizaç­ão dos serviços e falta de material gastável. Vai ano sai ano sempre a mesma desculpa.

As enchentes nos SIAC devem-se ao facto de os bilhetes levarem menos tempos para recepção do que noutros postos, contam populares. São cinco horas. Começa-se a registar um aglomerado de pessoas. Uns saem do interior de viaturas estacionad­as. Outros debaixo de árvores. Um grupo vem pela parte de trás a falar alto e muito descontraí­do. Passou à noite na esquadra, mas todos têm o nome numa lista, conforme a ordem de chegada. A lista foi entregue aos seguranças do SIAC e agentes da polícia em serviço.

Há três filas indianas na rua, rente à rede de arame do quintal. A fila de candidatos para tratar o Bilhete de Identidade está à direita e é muito longa. São aproximada­mente 400 pessoas, umas sentadas e outras de pé. A fila chega a atingir o quintal da EPAL. Defronte à porta principal está uma fila menos longa, a de populares que pretendem receber os Bilhetes de Identidade, tratados há três dias. À esquerda, a de pais que tencionam registar os filhos na Conservató­ria.

Segunda Filipe, 20 anos, e Deolinda Francisco, 26 anos, estão a ter uma conversa animada, como se fossem amigos de longa data. Ledo engano. Nunca se tinham visto antes. As vicissitud­es também unem as pessoas. Eles são exemplos

disso. Segunda vive no Benfica e Deolinda em Cacuaco. Ambos estão sentados em paralelo no pequeno muro que acolhe o arame tracejado do quintal.

Segunda chegou, no local, às duas horas, mas, ainda assim, é o número 30 para tratar o Bilhete de Identidade. A jovem tem urgência para matricular-se na universida­de.

Deolinda estava de saia longa e sapatos fechados para evitar picadas de mosquitos e suportar possíveis balbúrdias. Diz que nunca teve Bilhete de Identidade por falta de assento de nascimento.

“Tive de ir à minha província para tratar o assento de nascimento, porque sempre estudei com célula”, conta a jovem que, apesar do frio, não parava de falar. Chegou ao SIAC à meia noite, por isso está no lugar 23. Apesar de o Serviço de Identifica­ção atender por dia 60 pessoas, Segunda e Deolinda estão cépticas, em razão do número de pessoas inseridas de forma anárquica na lista pelos guardas.

Aliás, quando se observa dificuldad­e para obter algum serviço tem-se aberto um caminho fértil para a corrupção. “Os serviços do SIAC, por serem péssimos, derivam sempre em actos de corrupção”, conta uma funcionári­a pública, que aponta haver intermediá­rios que tratam de receber o dinheiro do esquema.

São seis horas. A multidão aumenta. Os primeiros da lista chegaram às 16 horas do dia anterior, conta Segunda, com vestes a condizer com o corpo esguio. E Deolinda confirma: “algumas pessoas passaram a noite com os filhos pequenos, o que é muito triste “.

A pequena Jucelina Bande, 14 anos, está quieta com uma capa plástica e com processos na mão, tal como a maioria das pessoas. De pé está a mãe que sustenta as costas doridas numa viatura. Dona Helena, uma mulher dos seus quase 40 anos, tem um pano enfaixado da cintura ao tornozelo. Com uma pasta, entrelaçad­a ao colo, a mulher retornou o lugar pelo terceiro dia consecutiv­o, ausentando-se mais uma vez do trabalho.

Nos dias anteriores, não conseguiu tratar do Bilhete da filha em função da enchente. Com o olhar incisivo, virado para a fila, conta que passou a noite no carro, com duas filhas, sendo que a mais nova tem um ano.

Dias há que as pessoas passam a noite ao relento para poder tratar a cédula de nascimento ou Bilhete de Identidade nas conservató­rias e nos postos de Identifica­ção. Fica difícil tratar documentos, sobretudo nesta altura do ano

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Centenas de pessoas passam a noite ao relento para poder tratar documentos em Luanda SAMY MANUEL | EDIÇÕES NOVEMBRO

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