Serviços adiam cidadania a nacionais e abrem brechas às irregularidades
Para justificar as falhas na entrega célere do Bilhete sde Identidade, o Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos alega todos os anos que está em curso o processo de informatização e modernização dos serviços e falta de material gastável
Um homem corpulento entra em ataque de nervos no momento em que digere as palavras de um guarda do SIAC de Talatona: “Quem não foi atendido volte amanhã”.
O rosto assombrado leva o homem a soluçar de tanta indignação. Já sem solução, mantém-se teimosamente firme na fila, fitando levemente para a mulher com o filho ao colo, e o rosto eriçado pela noite mal dormida à porta do SIAC. Abana a cabeça da direita para à esquerda, ao mesmo tempo que dispara favas para todos os lados. Celina Lukombo é a esposa do homem que se recusa a falar por estar furioso. Ele falseia um sorriso para dissimular o olhar penetrante que direcciona para o guarda de camisa branca e calça cinza enfraquecida.
“Chegamos, aqui, às 22 horas e somos o número 25 e não podem dizer que já fechou”, desabafa Celina numa voz menos colérica.
Não fosse a noite perdida, as picadas de mosquitos e o frio ardente, talvez a dor de Celina seria menor depois de ouvir que a área de registo de nascimento só atende até 20 pessoas por dia. “Isso não se faz. O meu marido faltou ao trabalho e agora dizem que não podem atender. Assim não está certo.”
“Assim ficamos como?", pergunta a mulher que vê o seu resmungo engrossado por outras vozes. “Tratar documento é muito difícil. Este país é muito desorganizado. Isto é puro desrespeito aos cidadãos”, atiram literalmente os populares, deixados de fora do registo. São perto de 50 pessoas que não podem fazer o registo dos seus filhos. Mesmo fazendo finca pé, de nada os valeu.
Prata tem também o filho de nove meses ao colo. Respira fundo. Mal consegue separar a fúria da cabeça, faz um esforço para falar. Balbucia repetidas vezes na medida que solta as palavras. Tal como Celina, Prata não sabia da modalidade do SIAC e ambos admitem que a justificação dos guardas não colhe. “Os guardas dizem que cumprem ordens e não podem fazer nada”. Só que Prata não esconde a insatisfação por uma razão: “é o número 21”. Ou seja, o vigésimo foi atendido.
Dados mundiais, publicados pelo Unicef indicam que uma em cada três crianças com menos de cinco anos de idade não tem existência oficial, o que totaliza 230 milhões de crianças.
Há dias que as pessoas passam a noite ao relento para poder tratar a cédula de nascimento ou Bilhete de Identidade nas Conservatórias e nos Postos de Identificação. Todos os anos ocorrem falhas e o Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos alega sempre estar em curso o processo de informatização e modernização dos serviços e falta de material gastável. Vai ano sai ano sempre a mesma desculpa.
As enchentes nos SIAC devem-se ao facto de os bilhetes levarem menos tempos para recepção do que noutros postos, contam populares. São cinco horas. Começa-se a registar um aglomerado de pessoas. Uns saem do interior de viaturas estacionadas. Outros debaixo de árvores. Um grupo vem pela parte de trás a falar alto e muito descontraído. Passou à noite na esquadra, mas todos têm o nome numa lista, conforme a ordem de chegada. A lista foi entregue aos seguranças do SIAC e agentes da polícia em serviço.
Há três filas indianas na rua, rente à rede de arame do quintal. A fila de candidatos para tratar o Bilhete de Identidade está à direita e é muito longa. São aproximadamente 400 pessoas, umas sentadas e outras de pé. A fila chega a atingir o quintal da EPAL. Defronte à porta principal está uma fila menos longa, a de populares que pretendem receber os Bilhetes de Identidade, tratados há três dias. À esquerda, a de pais que tencionam registar os filhos na Conservatória.
Segunda Filipe, 20 anos, e Deolinda Francisco, 26 anos, estão a ter uma conversa animada, como se fossem amigos de longa data. Ledo engano. Nunca se tinham visto antes. As vicissitudes também unem as pessoas. Eles são exemplos
disso. Segunda vive no Benfica e Deolinda em Cacuaco. Ambos estão sentados em paralelo no pequeno muro que acolhe o arame tracejado do quintal.
Segunda chegou, no local, às duas horas, mas, ainda assim, é o número 30 para tratar o Bilhete de Identidade. A jovem tem urgência para matricular-se na universidade.
Deolinda estava de saia longa e sapatos fechados para evitar picadas de mosquitos e suportar possíveis balbúrdias. Diz que nunca teve Bilhete de Identidade por falta de assento de nascimento.
“Tive de ir à minha província para tratar o assento de nascimento, porque sempre estudei com célula”, conta a jovem que, apesar do frio, não parava de falar. Chegou ao SIAC à meia noite, por isso está no lugar 23. Apesar de o Serviço de Identificação atender por dia 60 pessoas, Segunda e Deolinda estão cépticas, em razão do número de pessoas inseridas de forma anárquica na lista pelos guardas.
Aliás, quando se observa dificuldade para obter algum serviço tem-se aberto um caminho fértil para a corrupção. “Os serviços do SIAC, por serem péssimos, derivam sempre em actos de corrupção”, conta uma funcionária pública, que aponta haver intermediários que tratam de receber o dinheiro do esquema.
São seis horas. A multidão aumenta. Os primeiros da lista chegaram às 16 horas do dia anterior, conta Segunda, com vestes a condizer com o corpo esguio. E Deolinda confirma: “algumas pessoas passaram a noite com os filhos pequenos, o que é muito triste “.
A pequena Jucelina Bande, 14 anos, está quieta com uma capa plástica e com processos na mão, tal como a maioria das pessoas. De pé está a mãe que sustenta as costas doridas numa viatura. Dona Helena, uma mulher dos seus quase 40 anos, tem um pano enfaixado da cintura ao tornozelo. Com uma pasta, entrelaçada ao colo, a mulher retornou o lugar pelo terceiro dia consecutivo, ausentando-se mais uma vez do trabalho.
Nos dias anteriores, não conseguiu tratar do Bilhete da filha em função da enchente. Com o olhar incisivo, virado para a fila, conta que passou a noite no carro, com duas filhas, sendo que a mais nova tem um ano.
Dias há que as pessoas passam a noite ao relento para poder tratar a cédula de nascimento ou Bilhete de Identidade nas conservatórias e nos postos de Identificação. Fica difícil tratar documentos, sobretudo nesta altura do ano