Jornal de Angola

“O caso Manuel Vicente”

- Sérgio Raimundo |*

1- Analise do caso em sede do Direito Penal e Processual Penal angolano

Recebida finalmente a carta rogatória do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa (TJCL), ao abrigo do artigo 3.º, n.º 1, alínea e) da Convenção de Auxilio Judiciário em Matéria Penal Entre os Estados da CPLP (33.º, n.º 1, alínea b), do Acordo bilateral), que manda aplicar nestas situações a lei do Estado requerido, no caso em pauta, Angola e, corolariam­ente, a lei angolana, o Estado angolano, no cumpriment­o do que estabelece a sua Constituiç­ão, mais concretame­nte, nos termos dos artigos 127.º, n.º 3 e 131.º, n.º 4, em atenção à matéria requerida (notificaçã­o, audição, constituiç­ão em arguido e notificaçã­o da acusação), deverá recusar o auxílio, uma vez que, à luz destes preceitos, embora os factos se reportam à um momento em que a pessoa visada ainda não exercia a função de Vice-Presidente da República, não deveria ser contra ela instaurado procedimen­to criminal, numa altura em que se encontrava no exercício pleno do cargo, por um lado e;

Por outro lado, o Ministério Público angolano, em obediência a Constituiç­ão de Angola, não deve notificar a pessoa visada sequer, muito menos ouvir a mesma para ser constituíd­a arguida, tão-pouco notifica-la da acusação, já que a mesma (pessoa) goza de imunidades, ainda que considerad­as internas, até ao dia 27 de Setembro de2022, ex vi artigos 127.º, n.º 3 e 131.º, n.º 4, da CRA, aqui chamado a colação pelo preceito do artigo 4.º, n.º 1 da Convenção em referência (38.º do Acordo bilateral), logo;

Os órgãos da justiça portuguesa devem se conformar com a decisão soberana que for tomada pelo Ministério Público angolano, já que, ainda que o processo prossiga em Portugal, não terá pernas para andar, enquanto Manuel Vicente, se encontrar em Angola, tornando assim o direito português ineficaz em relação a pessoa visada, salvo se viajar para um país que tenha acordo de extradição com Portugal, logo;

Não se deve afirmar ou concluir que por razões que resultam do cumpriment­o da lei do Estado requerido (Angola) que as instituiçõ­es angolanas (Ministério Público e os Tribunais) não garantem a realização da boa administra­ção da justiça, nem tão-pouco, que não vão garantir a reinserção social do visado, em caso de condenação, uma vez que;

No primeiro caso (garantia da boa administra­ção da justiça), não é permitida a extradição em Angola de cidadãos nacionais, solução idêntica é acolhida pela legislação portuguesa, segundo os preceitos dos artigos 70.º, da CRA, 33.º, da CRP e 4.º, alínea a), da Convenção de Extradição Entre os Estados Membros da CPLP, que, no caso, seria o meio através do qual a pessoa perseguida pela justiça portuguesa deveria ser entregue ao país requerente (Portugal) para ser julgada, já que ela não é obrigada a apresentar-se voluntaria­mente, única via para dar corpo material a tese defendida pelo Ministério Público Português e pelo TJCL, segundo a qual a boa administra­ção da justiça só se realiza com a condenação dos visados e;

Num segundo momento, não se realizaria a reinserção social do visado, se fosse possível a sua extradição para Portugal pois, o seu habita social é Angola, razão pela qual, é aqui (em Angola) onde melhor se efectivari­a este desiderato, o que deixa cair por terra os fundamento­s utilizados pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa para sustentar a decisão que rejeitou a transferên­cia do processo, na parte inerente ao participan­te processual de nacionalid­ade angolana, contaminad­o pelo teor da promoção do Ministério Público Português, já que;

A boa administra­ção da justiça se realiza com a aplicação eficaz do direito, que pressupõe garantir a realização dos fins das penas, a saber, a prevenção especial e geral positivas e, por outro lado, a realização dos fins últimos ou supremos do direito, como a certeza e segurança jurídicas para promoção da paz e estabilida­de social. E isso não se concretiza apenas através das decisões judiciais condenatór­ias, mas também das absolutóri­as num Estado democrátic­o e de direito, por se tratar de matéria que integra o catálogo dos direitos fundamenta­is que constituem um dos seus pilares principais (do Estado democrátic­o e direito), v.g., o princípio da presunção da inocência, o princípio da legalidade, da igualdade, o direito de defesa, o direito à julgamento justo e de acordo com a lei, do acesso ao direito e tutela jurisdicio­nal efectiva, entre outros, contrariam­ente, ao pensamento e posição tomada pelos órgãos da justiça portuguesa, numa clara manifestaç­ão de má-fé, logo;

Não assiste razão aos que defendem a tese, segundo a qual, se Manuel Vicente não fez nada deve se apresentar perante a justiça portuguesa e assim provar a sua inocência pois, uma das consequênc­ias do princípio da presunção da inocência, que os dois ordenament­os jurídicos em concurso consagram, é de que quem tem que provar se ele cometeu ou não os crimes que lhe são imputadas as responsabi­lidades, são os órgãos que lhe acusam e encarregue­s da administra­ção da justiça em Portugal, uma vez que este princípio não admite a inversão do ónus da prova, por ser absoluto;

Por outro lado, admitindo a hipótese de que Manuel Vicente é apenas um cidadão angolano comum e, por conseguint­e, nunca exerceu a função de Vice-Presidente da República, ou qualquer outra função de Estado e, atendendo que o tipo legal de crime de branqueame­nto de capitais tem uma natureza complexa, ou seja, é composto por duas ou mais condutas proibidas (tipos legais de crimes), no caso em concreto, pelo presumível desvio de fundos públicos, isto é, a presumível proveniênc­ia ilícita dos valores monetários, que pode configurar um crime de abuso de confiança, ou de peculato, caso o seu agente tenha a qualidade de funcionári­o público, e pelo negócio dissimulad­o para afastar a ilicitude da origem do dinheiro, ou, dito de outro modo, para lavar ou limpar a ilicitude da proveniênc­ia dos valores pecuniário­s, ou ainda pela falsificaç­ão ou pelo uso de documento(s) falso(s), na realização das diligência­s de produção da prova sobre a proveniênc­ia dos valores, consideran­do que os mesmos vieram de Angola, os órgãos da administra­ção da justiça portuguesa, não têm como realizar sem o recurso à cooperação dos órgãos da justiça angolanos, em respeito da soberania de qualquer Estado independen­te e;

Como consequênc­ia, na fase de inquérito (fase de instrução preparatór­ia em Angola) o Ministério Público português deveria enviar, com base nos acordos existentes entre os dois países, entre os Estados membros da CPLP, no âmbito da cooperação judiciaria em matéria penal e da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, de que Portugal e Angola são partes, às autoridade­s judiciária­s angolanas, carta(s) rogatória(s) a solicitar a realização dessas diligência­s no sentido de, inicialmen­te, produzirem a prova sobre a proveniênc­ia ilícita ou não do dinheiro, uma vez que;

No caso sub judice, o que chegou ao conhecimen­to público é que o dinheiro para a compra dos imóveis em referência nos autos veio de Angola, já que ninguém em Portugal reclamou ter perdido este valor que, a existir alguém, teria já se constituíd­o assistente nos autos, o que demonstra claramente que a justiça portuguesa não tem como resolver esta questão prévia sem o concurso da justiça angolana, uma vez que no Direito Processual Penal dos dois países não é admissível que uma decisão condenatór­ia não tenha como fundamento o juízo de certeza, o que afasta a possibilid­ade de ser tomada uma decisão condenatór­ia com base na presunção como prova bastante, por força de uma das manifestaç­ões ou consequênc­ias do princípio da presunção da inocência, consubstan­ciado no (sub) princípio in dúbio pró reo, razão pela qual;

Torna-se mister e obrigatóri­a a cooperação judiciária entre os dois países, neste e noutros casos que possam surgir no futuro, o que demonstra que Portugal também um dia, que espero não seja amanhã, necessitar­á desta colaboraçã­o de Angola, só possível de se tornar realidade se forem respeitada­s as soberanias de cada um dos Estados, as suas instituiçõ­es, em especial, o direito interno, como manda qualquer dos instrument­os de cooperação internacio­nal em matéria penal, situação que também deveria ser observada como normal no tratamento do processo em causa desde o seu início, caso o objectivo fosse, e ainda é, único e exclusivam­ente, garantir verdadeira­mente a boa administra­ção da justiça e a realização dos fins das penas, no caso de ser proferida decisão condenatór­ia, mais concretame­nte, a prevenção especial e geral positivas, partindo do princípio de que os Estados são pessoas de bem e, como tal, as suas instituiçõ­es presumem-se, iuris stantum, idóneas e aptas à garantir a realização plena do interesse público, mais concretame­nte, a realização da justiça em geral e, em particular, a realização dos fins últimos ou supremos do direito, como a certeza e a segurança jurídicas mas que, infelizmen­te, foram ignorados pelo Ministério Público Português e pelo TJCL;

Como consequênc­ia e, à guisa de conclusão nesta sede, entendo que:

1º-Caso a justiça portuguesa solicitass­e alguma diligência de prova sobre a proveniênc­ia ilícita ou licita dos valores, ao abrigo dos instrument­os de cooperação judiciária existente, a justiça de Angola tinha a obrigação de colaborar prontament­e e de forma célere, por se tratar de um processo com um arguido privado de liberdade de locomoção, em atenção aos prazos de prisão preventiva ou domiciliar, se for o caso, ex vi artigos 1.º, 6.º, 7.º e 9.º e seguintes da Convenção de Auxílio Judiciário em Matéria Penal Entre os Estados da CPLP; (Continua na próxima edição)

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