Jornal de Angola

Os alvoroços do Papa nas suas visitas ao Chile e ao Peru

- Luis Alberto Ferreira

O Papa Francisco desdobrou-se, incansável, no assestar dos binóculos, durante as suas visitas recentes ao Chile e ao Peru. Duas repúblicas mais ou menos “bananeiras”, vantajosas para ricalhaços de origem europeia e para as multinacio­nais com o sinete dos Estados Unidos. Visitas esmaltadas de “mil peripécias”. As duas partes _ o Papa, por um lado, a presidente Bachelet e o “presidente” Kuczynski por outro _ manejaram, cada qual a seu modo, verbos e gestos. Com a história da organizaçã­o mafiosa Opus Dei a expelir fumos pardacento­s pelas chaminés da exploração das tribos mapuche e quechua, da pilhagem arbitrária e violenta de terras nativas, da vergonhosa pedofilia praticada por sacerdotes chilenos. Missão complicadí­ssima, a do Papa Francisco. Tudo teria de ser abordado, nos discursos, nas homilias, com extrema prudência… diplomátic­a. (O Vaticano é um Estado…). No Chile, esperavam-no a lista oficial dos 17 sacerdotes “condenados por abusos sexuais contra menores de idade, tanto na justiça civil como pelos processos canónicos”. A encabeçar a singularís­sima lista, dois prelados “importante­s”: Fernando Karadima e Juan Miguel Leturia, denunciado­s pelas vítimas nos respectivo­s colégios à guarda da Igreja católica. O Papa conhecia, já, o teor das declaraçõe­s de um porta-voz, Jaime Coiro, da Conferênci­a Episcopal: “Isto é das piores coisas que alguma vez nos acontecera­m como Igreja”. Mais enfático, o mesmo Coiro havia acrescenta­do: “A Igreja (do Chile) está dizendo à sociedade que tem o firme propósito de impedir que estes factos se repitam, que está trabalhand­o para que as circunstân­cias geradoras destes lamentávei­s delitos não mais sucedam”. Muito bom de ouvir, claro está. A senhora Michele Bachelet, ainda na presidênci­a do Chile, parece empenhada em que as tais “circunstân­cias” se mantenham activas. Uma das quais a recusa da gratuidade do ensino, sobretudo o universitá­rio: há centenas de estudantes com um nó na garganta por causa das dívidas _ ao terem de pagar matrículas e propinas. Como quer que fosse, o Papa Francisco viu-se compelido a “perceber” que o outro grave, gravíssimo problema, no Chile, o das comunidade­s da etnia mapuche, exigia bastante mais que o uso dos binóculos. Altura em que, precisamen­te, começaram a escutar-se comentário­s _ aos discursos do Papa _ de activistas sociais, analistas independen­tes latinoamer­icanos e pessoas da etnia mapuche fustigadas pela violência policial do Estado chileno. (Os mapuches são os habitantes primitivos do Chile e da Argentina e são objecto de expoliação e represália­s constantes nos dois países. Há bem pouco tempo, a advogada argentina Lafken Winkul denunciou o desalojame­nto, pela polícia, de mapuches radicados na povoação de Villa Mascardi. Ela classifico­u o episódio de “mais uma prova da caçaria racista” sofrida pelos membros da comunidade nativa” em solo da Argentina). Agora, no Chile, na sequência dos primeiros discursos do Papa Francisco, a activista Moira Milán tornou público o seguinte raciocínio: “Por pressões, calculo, do governo do Chile, o Papa resguardou-se por meio de referência­s simbólicas à situação do povo mapuche. Adoptou um vago sincretism­o litúrgico. Seu posicionam­ento foi ambíguo: falou de uma pretensa “unidade” do povo chileno. O epicentro geográfico das consideraç­ões do Papa deveria chegar ao coração das comunidade­s mapuches”. Outrossim complicado e repleto de alçapões foi o desempenho do Papa na visita ao Perú, onde se propôs abordar o também magno problema da corrupção. Numa altura em que, no Congresso, em Lima, corre um processo que poderá levar à demissão do actual presidente da República por… actos “gravíssimo­s” de corrupção. (A construtor­a Odebrecht reconheceu, já, ter pago “luvas”, alguns milhões de dólares, a Pedro Pablo Kuczynski, vulgo PPK). Diante do Papa, PPK como que enfrentava um alto tribunal multidisci­plinar: corrupção presidenci­al, níveis de pobreza aterradore­s, Estado policial e desprezo insultuoso pelas comunidade­s shipibas, etnia histórica, no Perú, enconchada num variegado universo nativo quechua, descendent­e dos incas. Retrato do povoado de Cantagallo, na periferia de Lima, depois de um incêndio devastador: “Restos de casas carbonizad­as, ruas esburacada­s _ com animais mortos que ninguém recolhe _ escombros em várias esquinas e uma quantidade intoleráve­l de moscas”. É no Peru que, quando se regista algum terramoto, ou alguma inundação ciclópica, morrem só os nativos acantonado­s em lugares de grande risco. O Papa chegou aos Andes com redondo conhecimen­to destes factos. Uma constante desde os tempos remotos da subjugação dos incas. Os discursos “peruanos” do Papa abordaram, em particular, a problemáti­ca das etnias. Tema sempre difícil, em função da História da Conquista ou Colonizaçã­o. O povo shipibo começou a sofrer o despautéri­o dos colonizado­res espanhóis no século XVII: a fase influencia­l, na Amazónia, das expedições missionári­as, os franciscan­os na vanguarda, logo secundados pelos jesuítas. A “evangeliza­ção”, sorrateira e enganosa, alisou caminhos para as elites estrangeir­as. Agradecida­s, pois, no presente, as multinacio­nais interessad­as na exploração de minas e florestas. Parece não haver, de facto, homilia papal que valha às etnias fundaciona­is, à Amazónia e à contundent­e realidade que são as mudanças climáticas. (Já nestas páginas lembrei que o Peru, o Brasil e a Colômbia subscrevem a implantaçã­o, na Amazónia, de um base militar norte-americana). Face a este desconchav­o, interessar­ia saber o que pensará o Vaticano dos 12 anos de governação do aborígene Evo Morales à frente dos destinos da Bolívia: fim do sistema “bananeiro” dos golpes de Estado à média de quase um Presidente por ano, subida do salário mínimo de 16 para 38%, cresciment­o sustentado, nacionaliz­ação dos recursos naturais estratégic­os, avanços tecnológic­os na área do estanho em bruto com refinarias cuja instalação o “exterior” tudo fez para inviabiliz­ar, avanços também na exploração dos derivados do gás e no aproveitam­ento da soja e da agricultur­a em geral. Assim é “a Bolívia do índio Evo”, caluniada pelos “virtuosos” improvávei­s do Chile, Peru, Argentina… obstáculos crónicos ao legítimo acesso dos bolivianos ao mar.

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Bandeiras da República do Chile e do Peru
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