Os alvoroços do Papa nas suas visitas ao Chile e ao Peru
O Papa Francisco desdobrou-se, incansável, no assestar dos binóculos, durante as suas visitas recentes ao Chile e ao Peru. Duas repúblicas mais ou menos “bananeiras”, vantajosas para ricalhaços de origem europeia e para as multinacionais com o sinete dos Estados Unidos. Visitas esmaltadas de “mil peripécias”. As duas partes _ o Papa, por um lado, a presidente Bachelet e o “presidente” Kuczynski por outro _ manejaram, cada qual a seu modo, verbos e gestos. Com a história da organização mafiosa Opus Dei a expelir fumos pardacentos pelas chaminés da exploração das tribos mapuche e quechua, da pilhagem arbitrária e violenta de terras nativas, da vergonhosa pedofilia praticada por sacerdotes chilenos. Missão complicadíssima, a do Papa Francisco. Tudo teria de ser abordado, nos discursos, nas homilias, com extrema prudência… diplomática. (O Vaticano é um Estado…). No Chile, esperavam-no a lista oficial dos 17 sacerdotes “condenados por abusos sexuais contra menores de idade, tanto na justiça civil como pelos processos canónicos”. A encabeçar a singularíssima lista, dois prelados “importantes”: Fernando Karadima e Juan Miguel Leturia, denunciados pelas vítimas nos respectivos colégios à guarda da Igreja católica. O Papa conhecia, já, o teor das declarações de um porta-voz, Jaime Coiro, da Conferência Episcopal: “Isto é das piores coisas que alguma vez nos aconteceram como Igreja”. Mais enfático, o mesmo Coiro havia acrescentado: “A Igreja (do Chile) está dizendo à sociedade que tem o firme propósito de impedir que estes factos se repitam, que está trabalhando para que as circunstâncias geradoras destes lamentáveis delitos não mais sucedam”. Muito bom de ouvir, claro está. A senhora Michele Bachelet, ainda na presidência do Chile, parece empenhada em que as tais “circunstâncias” se mantenham activas. Uma das quais a recusa da gratuidade do ensino, sobretudo o universitário: há centenas de estudantes com um nó na garganta por causa das dívidas _ ao terem de pagar matrículas e propinas. Como quer que fosse, o Papa Francisco viu-se compelido a “perceber” que o outro grave, gravíssimo problema, no Chile, o das comunidades da etnia mapuche, exigia bastante mais que o uso dos binóculos. Altura em que, precisamente, começaram a escutar-se comentários _ aos discursos do Papa _ de activistas sociais, analistas independentes latinoamericanos e pessoas da etnia mapuche fustigadas pela violência policial do Estado chileno. (Os mapuches são os habitantes primitivos do Chile e da Argentina e são objecto de expoliação e represálias constantes nos dois países. Há bem pouco tempo, a advogada argentina Lafken Winkul denunciou o desalojamento, pela polícia, de mapuches radicados na povoação de Villa Mascardi. Ela classificou o episódio de “mais uma prova da caçaria racista” sofrida pelos membros da comunidade nativa” em solo da Argentina). Agora, no Chile, na sequência dos primeiros discursos do Papa Francisco, a activista Moira Milán tornou público o seguinte raciocínio: “Por pressões, calculo, do governo do Chile, o Papa resguardou-se por meio de referências simbólicas à situação do povo mapuche. Adoptou um vago sincretismo litúrgico. Seu posicionamento foi ambíguo: falou de uma pretensa “unidade” do povo chileno. O epicentro geográfico das considerações do Papa deveria chegar ao coração das comunidades mapuches”. Outrossim complicado e repleto de alçapões foi o desempenho do Papa na visita ao Perú, onde se propôs abordar o também magno problema da corrupção. Numa altura em que, no Congresso, em Lima, corre um processo que poderá levar à demissão do actual presidente da República por… actos “gravíssimos” de corrupção. (A construtora Odebrecht reconheceu, já, ter pago “luvas”, alguns milhões de dólares, a Pedro Pablo Kuczynski, vulgo PPK). Diante do Papa, PPK como que enfrentava um alto tribunal multidisciplinar: corrupção presidencial, níveis de pobreza aterradores, Estado policial e desprezo insultuoso pelas comunidades shipibas, etnia histórica, no Perú, enconchada num variegado universo nativo quechua, descendente dos incas. Retrato do povoado de Cantagallo, na periferia de Lima, depois de um incêndio devastador: “Restos de casas carbonizadas, ruas esburacadas _ com animais mortos que ninguém recolhe _ escombros em várias esquinas e uma quantidade intolerável de moscas”. É no Peru que, quando se regista algum terramoto, ou alguma inundação ciclópica, morrem só os nativos acantonados em lugares de grande risco. O Papa chegou aos Andes com redondo conhecimento destes factos. Uma constante desde os tempos remotos da subjugação dos incas. Os discursos “peruanos” do Papa abordaram, em particular, a problemática das etnias. Tema sempre difícil, em função da História da Conquista ou Colonização. O povo shipibo começou a sofrer o despautério dos colonizadores espanhóis no século XVII: a fase influencial, na Amazónia, das expedições missionárias, os franciscanos na vanguarda, logo secundados pelos jesuítas. A “evangelização”, sorrateira e enganosa, alisou caminhos para as elites estrangeiras. Agradecidas, pois, no presente, as multinacionais interessadas na exploração de minas e florestas. Parece não haver, de facto, homilia papal que valha às etnias fundacionais, à Amazónia e à contundente realidade que são as mudanças climáticas. (Já nestas páginas lembrei que o Peru, o Brasil e a Colômbia subscrevem a implantação, na Amazónia, de um base militar norte-americana). Face a este desconchavo, interessaria saber o que pensará o Vaticano dos 12 anos de governação do aborígene Evo Morales à frente dos destinos da Bolívia: fim do sistema “bananeiro” dos golpes de Estado à média de quase um Presidente por ano, subida do salário mínimo de 16 para 38%, crescimento sustentado, nacionalização dos recursos naturais estratégicos, avanços tecnológicos na área do estanho em bruto com refinarias cuja instalação o “exterior” tudo fez para inviabilizar, avanços também na exploração dos derivados do gás e no aproveitamento da soja e da agricultura em geral. Assim é “a Bolívia do índio Evo”, caluniada pelos “virtuosos” improváveis do Chile, Peru, Argentina… obstáculos crónicos ao legítimo acesso dos bolivianos ao mar.