Jornal de Angola

É bom ter amigos

- Manuel Rui

Só depois de me abraçar e me beijar em cada lado da face e sentir a sua barba larga e espessa, “tio já nem me ia conhecer se não fosse a minha voz!” Pois. O Kari. Estávamos os dois emocionado­s. Ele teria uns doze anos desde a última vez em que juntos fazíamos comida chinesa, vietnamita ou indiana. Kari surpreendi­a-me pela velocidade da sua inteligênc­ia. Sentámo-nos. Coca-cola e quitaba. Ele era o narrador. Estava na Namíbia. Já cá voltara três vezes mas só agora lhe deu para me visitar pois a avó, onde ficava, morava longe. Certo que nunca se esquecera de mim e das comidas. Faltava-lhe um ano para acabar gestão. “Kari, toda a gente agora tira gestão. Não vai haver lugar para tanto gestor!” Kari começou a fazer uma demonstraç­ão de que estava a par de tudo. Vivia com quatro colegas numa casa arrendada, lá em Windhoek as rendas eram baratas, ele era o responsáve­l pela comida, somava o aprendido comigo com alguma culinária namibiana que ele achava fraca mas sabia fazer a churrascad­a deles com costeletas de carneiro, cabrito, barriga de porco e carne de vaca com gordura que ele retirava. Lá em comida eram fracos e quase não variavam, nem conheciam quizaca, chegava lá óleo de palma ido daqui. A fuba era de milho. A cidade eras calma. Já havia luz e água no bairro onde se acoitavam os marginais, muitos angolanos, o bairro Katutura. Deitavam-se às oito e meia nove horas e às sete estavam a caminho para as aulas. O dinheiro chegava por um esquema de Kwanzas que não explicou bem. Eu interrompi, de bairrismo, Windhoek é mais pequena e mais pobre que o Lubango! Sim, tio Rui mas não falta água nem luz e quando há apagão de meia ou uma hora, para manutenção, avisam pela rádio e televisão. São organizado­s. Vi o presidente de calções numa esplanada e o de Portugal a tomar banho aqui na ilha e a cumpriment­ar as pessoas Lá em casa seguimos satisfeito­s as mudanças, só me admira o tempo que se perde a falar de um caso que nem vale mais a pena…dinheiro. Veja só em Moçambique compraram carros top de gama para os deputados, o povo anda em carrinhas com bancos na carroçaria, o valor dos carros dava para comprar oitenta autocarros. E o tio sabe que lá desaparece­u o dinheiro das doações internacio­nais, não percebo esta doença dos carros em alguns países de África e um colega meu falou que em alguns países os que eram deputados e saem levam os carros para casa mas se voltarem a ser eleitos recebem outros. Disseram-me que aqui também compraram mais carros e até que a pessoa que agenciou a compra é… nada Kari que eu penso que os carros foram comprados muito antes para aquela cerimónia da passagem de testemunho. Desculpe tio, nós lá dizemos que felizmente isto está a despiorar porque foi muito tempo a piorar, desculpe mas o tio sabe que o presidente da Tanzânia, Magufuli mandou que todos os carros 4 por 4 e outros de luxo ao serviço de altos funcionári­os do estado fossem vendidos e o dinheiro aplicado em serviços públicos e assim os ministros, presidente­s de tribunais, altos funcionári­os públicos e embaixador­es têm de escolher Probox, Passo, Platz ou Vitz. Vejo que vocês estão longe da terra mas continuam a pensar. O tio não sabe? Tem estudantes filhos dos ricos daqui que lá andam de jipaços e carros sport. E nós conhecemos os palácios todos de gente daqui. É demais. Um palácio do marido e outro da mulher e nunca lá vão, podiam nos deixar a tomar conta das duas casas e de outras mas é assim. Todos os nossos colegas querem namorar com angolanas mas elas não lhes dão troco e as miúdas namibianas pensam que somos todos ricos aqui. Também sabemos que agora já há manifestaç­ões aqui e que o novo presidente é…mesmo novo. Tio, eu acho que do passado não vale a pena chorar mais o que se roubou pois mesmo assim muito filho de camponês chegou a doutor, fizeram-se escolas, hospitais e agora é melhor pensar no que é preciso fazer daqui para a frente, sabe que agora está difícil chegar lá o dinheiro mas tem sempre câmbios na Katutura e já fiz duas viagens por terra mais dois colegas. Comprámos cuca de lata na fronteira, pagámos as taxas e depois vendemos lá em dólares namibianos, valeu a pena e desta vez vamos levar mais coisas e um balão de roupa de fardo mas, principalm­ente, peixe seco, isso lá é ouro. Luanda está cheia de arranha-céus, tio, quem mora lá? Isso também já perguntei a mim mesmo várias vezes, não faço ideia. E os donos? Isso tu deves imaginar, Kali! Se não ficar na Namíbia quando voltar vou para o Lobito ou Benguela, por causa da calma, já me habituei. Aqui tem muita gente a correr de um lado para o outro. Antes que me esqueça, tem aqui este embrulho com carne seca daquela que o tio trazia da África do Sul e me ensinou a fazer com feijão preto. É um sucesso esse prato lá em casa quando convidamos amigos e amigas. Hoje, sábado, se o tio quiser vou-lhe ensinar comida italiana que aprendi lá ou vamos cozinhar a carne seca? Sim, Kari, carne seca, muamba com quiabos, repolho, lossacas e pirão de milho. Não imaginas com me sinto feliz em te ver já um homem. Que bom, tio Rui! É bom ter amigos!

Também sabemos que agora já há manifestaç­ões aqui e que o novo presidente é… mesmo novo. Tio, eu acho que do passado não vale a pena chorar mais o que se roubou pois mesmo assim muito filho de camponês chegou a doutor

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SANTOS PEDRO | EDIÇÕES NOVEMBRO
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