“Eles ousaram fazer isto!”
Os ventos do Congo já há muito sopravam sobre Luanda. A sociedade colonial estava inquieta, no ar havia como que o anúncio de algo avassalador que estava para vir.
As duas sociedades, a branca e a negra, se interligavam na aparência, de costas voltadas, o poder branco ia encaixando e controlando os negros na lógica do Portugal de Minho a Timor, se não ....
Se não, ali estavam as prisões e na Casa da Reclusão, diziase entre os colonos, havia «terroristas» presos. O documentário das «Actualidades Francesas» sobre o assassinato de Patrice Lumumba fora proibido para não excitar os ânimos. A sociedade colonial parecia amordaçada, mas na poeira vermelha do Sambizanga, do Marçal, do Bairro Operário, do Rangel, do Cazenga, algo se preparava.
No Huambo, a família do patriarca Chingunji já pontificava num nacionalismo que bordava a águia da liberdade numa bandeira vermelha branca e preta. A quase totalidade das crianças e jovens negros servia como «criados» em casa de brancos. Ao contrário dos meninos brancos, deviam ter um «cartão de trabalho» assinado todos os dias pelos patrões, se não, não podiam sair à rua, eram considerados «vadios».
Na «Prisão Indígena», ali onde hoje chamam «Zé Pirão», amontoavam-se jovens negros apanhados na rua pelos cipaios, a «segunda linha» da Polícia, integrada sobretudo por efectivos vindos do Cunene, os «cuanhamas», a que os colonos chamavam «pretos fiéis», tal como a população do Planalto Central, a que os colonos chamavam «os fiéis bailundos», em contraponto às pessoas de Luanda, Catete e Malanje, apelidadas de «pretos falsos» pelos colonos.
Civilizações e culturas destruídas até à sua raiz pelas armas coloniais, o Bailundo e o Cuanhama, descaracterizados, manipuladas e escravizadas até à mais abjecta indignidade.
Quando um «rapaz negro» era apanhado na rusga do asfalto sem o «cartão de trabalho» era metido na «Prisão Indígena». Das duas, uma: ou os patrões caridosamente iam lá resgatálo, ou ia para o «trabalho forçado», algo de que hoje parece ninguém ter ouvido falar. «Trabalho forçado» eram as obras públicas que o poder colonial erigia na «colónia de povoamento branco», sobretudo estradas e também «fazendas majestáticas» que precisavam de mão-de-obra que só custasse peixe-seco adulterado, bombó ou milho apodrecidos.
A população da colónia estava rigorosamente estratificada na base da cor da pele. Em primeiro lugar estava a «grande burguesia» do poder, vinda de Liaboa, que comandava os «brancos de primeira». Depois vinham os «brancos de segunda», naturais de Angola, considerados como a «segunda linha» do colonialismo. A comunidade de origem lusitana alargava-se timidamente às «senhoras africanas», isto é, senhoras «cabritas» de pai branco, que navegavam entre o céu e o inferno. Para baixo, vinham os «cabritos», que tentavam a todo o custo passar por brancos, os «mulatos claros», os «mulatos escuros», os «mestiços claros» e «escuros», e depois no fundo da escala, os párias, isto é, os «pretos», «pretos claros», «pretos fulos»...
O cine Colonial, em má hora demolido não se sabe por quem, revelava, naquele ano de 1961, e naquele bairro de transição entre o Bairro Operário e o Sambizanga (Samba ny Zanga), o que se passava. Habitado por «pequenos brancos» que fugiam do espectro maldito de terem de conviver com negros, o cinema estava dividido como passo a expor. Bem na frente da tela de cimento dispunham-se bancos corridos de cimento sem costas, reservados aos «indígenas», isto é, negros sem Bilhete de Identidade português. Um muro separava esse mundo do outro mais acima, a «superior», bancos de madeira corridos e com costas, para «assimilados», «mestiços» e alguns «pequenos brancos». Nova separação dava lugar a cadeiras de madeira individuais para os brancos residentes no bairro. E em cima os camarotes recebiam famílias de brancos, regra geral pequenos funcionários públicos.
Para se compreender a lógica desses tempos temos de reservar umas linhas ao seguinte: as pessoas negras, sem BI português, só podiam assistir aos filmes para maiores de seis anos e permitidos a indígenas. Mesmo que tivesse cem anos, o «preto indígena» não podia assistir a filmes para maiores de 13 anos. «Pretos indígenas», repare-se, eram 99,99 por cento da população negra e só tinham um caminho nas suas vidas, trabalhar para o branco.
Para tentar esbater essa contradição, o colonialismo inventou a figura do assimilado, um «mestiço ou preto» com provas dadas e reconhecidas pela sociedade branca, isto é, quarta classe, ser cristão praticante e abandonar, pelo menos aparentemente, os seus hábitos ancestrais, isto é, aparentar ser «tão branco como o próprio branco ou ainda mais».
Em 1961 vigorava a lógica do «mundo branco» em Angola, servido pelo «submundo negro». O filtro era severo. O «mundo branco» tolerava que um branco se relacionasse com uma mulher negra mas não tolerava que uma mulher branca se relacionasse com um homem negro, era um «escândalo imoral». O «mundo branco» tolerava que um negro andasse de dia pelas ruas asfaltadas devidamente munido do «cartão de trabalho» assinado, mas não tolerava que um negro andasse sem esse documento e muito menos andasse de noite, por ser «vadio» e passível de detenção. Matar uma pessoa negra, naquela altura, não significava mais, moral e judicialmente, para as pessoas brancas, do que matar um animal sem dono. O negro, ou era dócil e «fiel» para o branco, ou era um inimigo que devia ser abatido.
Por Luanda, passavam os camiões carregados de «bailundos» sequestrados nas suas aldeias para irem trabalhar nas roças de café do Norte. E a população branca e a população negra de Luanda assobiava «Monangambé...» para esses infelizes agora sem família. Essa música nos acompanhará na memória até á morte e faz parte da nossa tragédia.
Era o início de 1961, África explodia de nacionalismos e de reivindicações de autodeterminação nacional. O poder colonial em Angola tentava silenciar o que se passava, transformando Angola numa «ilha» isolada do continente. Mas a dinâmica africana não podia ser controlada e os colonos sentiam-se abandonados por Lisboa, que não reforçava militarmente a colónia.
Agostinho Mendes de Carvalho e muitos outros nacionalistas já estavam na cadeia que, comparada com o que se passou depois, ainda lhes administrava um «tratamento brando». Os mujimbos entre celas, apanha aqui traz dali, anunciavam que os presos em breve iam ser transferidos para Cabo Verde. Foi Mendes de Carvalho quem disse à família, numa visita, em estado anímico que não é necessário explicar, que iam ser transferidos para fora do país.
Essa notícia correu célere pelo «submundo do nacionalismo», um mundo não existente, rigorosamente clandestino, sem nome ou com muitos nomes, então a consigna foi dada aos militantes, salvar os companheiros da deportação para Cabo Verde, atacando as prisões. A manhã do 4 de Fevereiro O «mundo branco» acordou estremunhado. Tinha havido uns tiros nas barrocas e parece que tinham atacado de madrugada a esquadra dos polícias recém-chegados de Lisboa, na estrada de Catete. A convergência dos colonos, incrédulos, foi para as barrocas e as mais desencontradas informações circulavam. Havia quem dissesse «eles não fizeram isso», «não é possível os nossos pretos terem feito isto», «não foram os pretos daqui foram os do Congo», «se aconteceu foi porque a metrópole nos abandonou». A Luanda dos colonos estava em estado de choque. «Mataram polícias», «terroristas...», eram as palavras que mais circulavam entre os colonos, que rapidamente se organizaram em defesa civil nos bairros para uma mais eficaz «caça ao preto terrorista» durante a noite.
A partir desse dia, no qual nenhum civil do «mundo branco» foi molestado, desencadeia-se uma brutal «caça ao negro». Em todas as casas do «mundo branco» se vasculham as roupas dos serviçais negros, em busca de calções e camisolas pretas, símbolo que os colonos atribuíam aos «pretos falsos». Nas ruas os colonos procuram negros com óculos ou com livros debaixo do braço, «sinais exteriores» das suspeitas pessoas negras intelectualizadas, possíveis «terroristas».
Na rua de São Paulo os «pequenos brancos» entretêm-se com as suas pistolas na «caça ao terrorista» e o bairro Sambizanga é incendiado. Nos bairros, informadores, onde pontificavam pessoas cabo-verdianas, indicavam, porta a porta, aos agentes da polícia política, possíveis «terroristas». Para as cadeias são atirados todos os suspeitos, bastava que um negro respondesse a um branco de forma que este não gostasse e logo lhe era atribuído o nome «terrorista», morto à vista ou atirado para uma prisão. Um número incalculável de pessoas foram mortas a sangue frio, bastava um «pequeno branco» gritar «terrorista, terrorista!» e sem mais explicações aumentava o número de pessoas negras assassinadas.
Possuídos de um estado que ia da frustração por aquela «surpresa» vinda de quem «não existia» à raiva contra a matrópole à ânsia histérica de vingança e ao despeito contra quem eles pensavam estar a apoiar os «terroristas», grupos de colonos descem do Kinaxixe, onde tinham edificado a estátua glorificando feitos coloniais portugueses no Cunene contra os seus rivais colonialistas alemães, e vão directos à «Missão americana», onde hoje é a Igreja Metodista, agarram nos carros do pessoal americano e atiram-nos para a Baía.
Milhares de pessoas são fechadas na Fortaleza de São Pedro da Barra e alimentadas com comida feita com água do mar. A polícia política portuguesa, ainda imberbe na colónia, reforça-se rapidamente para dar resposta ao grito nacionalista e sossegar os colonos, descontentes e cheios de medo com a passividade de Lisboa.
Mas o relativo sossego do «mundo branco» da colónia com as prisões massivas de negros durou pouco porque, um mês depois, chegam a Luanda notícias desencontradas sobre levantamentos violentos no Norte contra «a população branca».
Fevereiro e Março de 1961 marcam o fim brusco de um «mundo colonial branco sereno». «Eles tiveram a ousadia de fazer isto!», exclamavam enraivecidos os colonos em Luanda naqueles meses de intempérie que iam mudar as nossas vidas para sempre.