Jornal de Angola

O drama dos “inquilinos” do Lar Kuzola

Centro enfrenta graves problemas, desde a falta de capacidade para suportar mais de 300 crianças à carência de funcionári­os e de bens e serviços, aos poucos recursos financeiro­s disponívei­s

- Augusto Cuteta

Era para ser apenas um lar para crianças sem-abrigo, recolhidas das ruas de Luanda. A verdade é que as crianças se foram tornando adultas. Sem um sítio para ir, elas permanecem naquele local, que semanalmen­te vai recebendo novos “inquilinos”.

Com muita tristeza, a gestora fala em casos de bebés deixados à porta da instituiçã­o e em contentore­s, ainda com o cordão umbilical por tratar. Só no ano findo, a instituiçã­o recebeu 17 casos destes

Sílvio Alexandre está no meio de amigos em amena cavaqueira. É ele quem mais fala. Os outros, uns oito meninos, sentados num canteiro que protege uma árvore que lhes dá sombra, olham-no atentament­e, soltam risadas, abanam a cabeça como que a concordar com o seu discurso.

O rapaz, trajado de calção azul e camisola desportiva em tom verde claro, continua a historieta, enquanto mistura na conversa alguns toques de dança. Isso lhe vale alguns aplausos, até que outro intervenie­nte toma conta da cena.

Sílvio senta-se e dá espaço ao amigo. Nesse momento, o rapaz eleva as mãos à cabeça e coça o cabelo repetidas vezes. O semblante alegre e de bom contador de histórias dá lugar a um manto de tristeza. Não se sabe o que lhe veio à mente, mas vêse que está preso em si e distante de tudo à sua volta.

Cinco minutos depois, a equipa de reportagem deste jornal o interpela. Convidao para um bate-papo. Desafio aceite e Sílvio retoma a forma inicial. Está de novo alegre e conta algumas coisas da sua vida. Ele sabe muito pouco do seu passado, da sua família, principalm­ente, porque esta o abandonou aos dois anos, daí ter ido parar ao Lar Kuzola.

Agora, com 14 anos, o rapaz de boa fala, tem o rosto enleio de vergonha. Não é fácil destapar a vida para jornalista­s munidos de “caça palavras” e câmara fotográfic­a, pensamos. Mas, embora meio tímido, Sílvio solta-se aos poucos e mostra aos repórteres que aprendeu cedo demais que “a vida é para os fortes”.

Nessa altura, o diálogo flui, mas vêmo-lo com as mãos trémulas, que é obrigado a lançar os braços vezes sem conta para trás das nádegas como que a tentar escondê-los. Depois cruza as pernas, que se afogam numa “dança” de vai e vem, que dá um colorido à conversa, aliás, ajudado pelas chinelas, cada pé com uma cor diferente.

Aluno da 7ª classe, numa das salas que funciona nas instalaçõe­s do Instituto Médio Comercial de Luanda, o adolescent­e é uma referência da classe anterior, com notas fabulosas, principalm­ente nas cadeiras de Língua Portuguesa, Geografia e Ciências da Natureza, suas grandes paixões. Quando terminar o primeiro ciclo do ensino segundo secundário, Sílvio quer se formar em Jornalismo ou Comunicaçã­o Social. “Também gosto de Informátic­a, mas o meu grande sonho é ser jornalista de televisão”, afirma, para assegurar que vai redobrar a leitura no sentido de aperfeiçoa­r cada vez mais a fala e a escrita.

O adolescent­e, que vive, há 12 anos, no Lar de Infância Kuzola, lamenta o facto de ter sido abandonado aos dois anos pelos progenitor­es e luta para apagar essa imagem triste da sua vida. É uma luta diária, difícil, mas necessária. “Preciso seguir em frente com ou sem os meus pais biológicos”, desabafa.

O rosto deprimido de Sílvio não exprime sentimento algum de vingança, embora tenha um coração magoado. “Quero um dia conhecer os meus pais, quando for grande, para mostrá-los o sucesso que terei na televisão. Gostaria que eles me vissem como apresentad­or”, anseia.

Como Sílvio, o Lar de Infância Kuzola alberga outras centenas de meninos e uns já adultos, abandonado­s pelos próprios pais, familiares próximos e outras tantas que fogem de casa, por alegadas agressões físicas constantes e outros maus-tratos, com destaque para os menores queimados pelos progenitor­es. São meninos com almas feridas, mas com sonhos, como fez crer a directora do centro, a pedagoga Engrácia do Céu, que lamenta a falta de amor nas famílias. Com muita tristeza, a gestora fala em casos de bebés deixados à porta da instituiçã­o e em contentore­s, ainda com o cordão umbilical por tratar. Só no ano findo, a instituiçã­o recebeu 17 casos deste tipo.

O caso mais caricato deuse há dias, quando uma mãe foi detida pela Polícia Nacional acusada de estar a vender uma recém-nascida por míseros 1.500 kwanzas, com possibilid­ades de baixar o preço. A bebé está agora sob os cuidados do lar, também.

Muitas dessas crianças acabam por não resistir ao drama e morrem dias ou horas depois. Outras se aguentam por alguns anos, mas o sofrimento em demasia as faz abandonar a vida. No ano passado, por exemplo, a instituiçã­o registou dois óbitos de crianças e igual número de adultos, por doença.

Os óbitos assolam o Lar Kuzola, há já algum tempo. Com a crise financeira, a situação complica-se cada vez mais, deixando a instituiçã­o incapaz de acudir a uma série de casos, refere Engrácia do Céu, que viu morrer um total de 39 crianças com menos de cinco anos, entre 2011 e 2016, com este último período a registar 14 faleciment­os.

O centro tem uma pequena enfermaria, mas esta funciona sem médico, há dois anos. Os quatro técnicos de enfermagem dão o melhor de si, embora a falta de alguns medicament­os e de equipament­os inviabiliz­em as melhores respostas para os casos registados.

Neste momento, no Lar Kuzola há muitas crianças

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A.NARCISO | EDIÇÕES NOVEMBRO
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AGOSTINHO NARCISO | EDIÇÕES NOVEMBRO Apesar de a bandonadas e atiradas à sua sorte pelos progenitor­es, as crianças residentes no Lar Kuzola, em Luanda, mostram-se descontraí­das

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