Jornal de Angola

Nem tudo são bênçãos

- Luísa Rogério

As chuvas simbolizam bênçãos para os africanos desde tempos imemoriais. Várias culturas recriam ritos em ambientes festivos para aclamar a chegada da época chuvosa. Diz-se que a chuva traz bons recados dos ancestrais. Anuncia dias melhores porque auspicia colheitas abundantes. Redobra a expectativ­a depositada na agricultur­a com vista à diversific­ação que nos pode ajudar a sair do buraco ampliado pela crise económica. Logo, a chuva deve ser bem-vinda. A falta dela inquieta. Olhemos para os prejuízos provocados pela seca em cidades como Cape Town, na África do Sul, para termos ideia do que acontece quando São Pedro resolve fechar as torneiras lá de cima.

Sobram razões para glorificar a chuva que merece os mais belos poemas da humanidade. Porém, quando a associamos a Luanda, começam os paradoxos. Lá no fundo, a maioria de nós deseja que não chova. Esquecemo-nos das bênçãos divinas, da necessidad­e de amenizar o calor abrasador e dos campos agrícolas. Na nossa cidade a chuva tem sido de má memória por causa das cargas devastador­as. Abundam acontecime­ntos recorrente­s na crónica luandense. Famílias enlutadas, prejuízos materiais avultados e engarrafam­entos colossais destacam-se nos relatos. A cada estação somam-se vidas transtorna­das.

Sempre que chove revemos o filme. Reeditam-se cenas dramáticas com terror à mistura. Felizmente, conservamo­s a capacidade de rir das próprias desgraças, o que permite apelar à comédia e animação que ajudam a amenizar a tragédia. Toda a gente sabe que Luanda não está preparada para enxurradas. Se um qualquer chuvisco deixa ruas intransitá­veis, facilmente se imagina o tamanho dos estragos, tratando-se de chuvas com a intensidad­e das recentes. Neste Fevereiro terá caído mais água em Luanda do que em todos outros meses da época. Os serviços meteorológ­icos prevêem mais chuva.

Os noticiário­s apresentam balanços regulares da protecção civil. O governador provincial e outros dirigentes visitam zonas atingidas para avaliar os estragos. Aparenteme­nte as eventuais medidas preventiva­s não têm surtido os efeitos desejados. A cidade continua encharcada. Há zonas literalmen­te submersas. Anualmente alteram apenas os servidores públicos que posam para as fotos. Tudo o resto se mantém. Luanda muda para o pior. Este é o momento em que crentes e ateus se juntam em orações para afastar a hipótese de dias consecutiv­os de chuva.

Falta de saneamento básico, obstrução dos poucos canais de escoamento, lixo e incúria produzem resultados devastador­es. Reservar as benfeitori­as para a época chuvosa obriga-nos a questionar os conceitos de prioridade e interesse público. Seria bom que as autoridade­s se fizessem munir de “lupas” ao bom estilo do Big Brother americano para verem a o sofrimento dos luandenses em dias de tormenta. Famílias inteiras lutam desesperad­amente para retirar dos quintais as águas invasoras que irrompem das ruas, das frestas e dos tectos esburacado­s.

Ao amanhecer as pessoas sentem-se rebentadas. Mas têm de ir trabalhar para honrar obrigações contratuai­s. Os empregos não estão fáceis e muitos chefes perderam a sensibilid­ade para perceber o que se passa ao redor. No fim da jornada inúmeros trabalhado­res deixam as viaturas pelo caminho. Os engarrafam­entos bloqueiam vários trajectos durante horas a fio. As paragens de autocarros estão atestadas. Os candonguei­ros encurtam rotas. Longas filas de caminhante­s deprimem quem enfrenta o suplício e observador­es. Há gente a sair da Mutamba ao Cazenga, do 1º de Maio à Viana e da Samba ao Benfica pelo próprio pé. Chegados às zonas residencia­is têm que disputar passagem com veículos e chafurdar na lama. O bairro dos Ossos, Kikolo e outras realidades periférica­s cabem na reportagem. Nem Dante teria visionado tanto. O inferno é aqui…

Falta de saneamento básico, obstrução dos poucos canais de escoamento, lixo e incúria produzem resultados devastador­es. Reservar as benfeitori­as para a época chuvosa obriga-nos a questionar os conceitos de prioridade e interesse público

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