Jornal de Angola

Arminda no seu palácio de cristal

- Rui Ramos

De manhã manhãzinha Tia Arminda se ergue vazia nos seus já pesados trintas ou quarentas nem ela sabe, ainda as cinco vêm longe mas o calor abafado da chapa prenuncia o ar estagnado de Kifangondo.

O sonho de Arminda é alimentar os seis filhos sozinha bem sozinha ela que já foi linda donzela na lavra onde nasceu e cresceu e onde lhe entregaram ao marido-primo Laurindo em troca ela nem se lembra já de quê mas não pode esquecer os lados do norte onde a fronteira com língua kimbundu traça um muro mas o kikongo prevalece, para lá do Dange.

Orgulho não morre na divisão de chapa feita à pressa para acolher a família e onde impera um quase morto colchão que nem é de espuma nem de nada só um amarelo escurecido já gasto por tanta insónia, tanto suor e tanta febre de mosquito.

Arminda viveu no Kicolo, aterrou ali, já nem se lembra como, com marido e três filhos, se banhou com poeira, menina linda olhou no amarelo-claro das chamas do sol do mês de Março e se acostumou.

Mas para se acostumar, Arminda vacilou, nunca tinha visto tanta gente junta a fazer tanta confusão, a falar tantas línguas. Arminda procurou kikongo buscou laços nos rostos vazios perdidos nos sonhos de vender.

Arminda de repente se viu sozinha no Kicolo com três bolinhos de gente para cuidar, marido bazou na procura de emprego, assim lhe disse.

Quando marido regressou só balbuciou parece vão me arranjar como segurança privado, trouxe dois primos da terra aconselha isto e aquilo e de repente umas chapas e ripas para pregar paredes e telhado, uma vizinha deu pano para tapar a entrada, outra deu espelho partido.

Com casa quase pronta dormiram no chão duro e quente, a bebé chorando leite, os outros gatinhando, barriga a crescer com ar. Mas pobre não tem juízo e naquela lua-de-mel Laurindo encheu de novo a barriga da Arminda, rumo ao quarto.

Dia seguinte se ergueram, se lavaram numa bacia emprestada e foram viver ainda tímidos no mundo fora do mundo.

Com trezentos kwanzas amarrotado­s guardados nos panos, Arminda perguntou numa vizinha, onde posso comprar bolacha barata porque espiou alguém vendendo. E de repente se viu numa cantina comprando dois pacotes e ainda sobraram valores.

Arminda dividiu cada pacote em dois, bem divididinh­os, pediu saquinho para amarrar, se sentou e expôs o seu primeiro produto, cada pacote cem. Vendeu tudo, a fome dos vividos é muita e bolacha maria mata mesmo a fome. Um cliente até lhe sugeriu, mãe, bolacha faz sede, nos traz só água fresca.

Com os primeiros kwanzas amealhados e com sorriso grande no rosto bonito de miss qualquer coisa, Arminda no dia seguinte já tinha duas garrafas de água para vender e mais saquinhos de bolacha maria, e assim é construída uma vida.

Laurindo, esse, nas andanças de novo caenche, murmurou, parece que me vão dar mesmo emprego de segurança privado numa cantina no Cazenga.

E quanto vão te pagar? Parece vinte mil. E não disse mais.

Na cabeça carrapitos­a da menina-mamã Arminda passou na zuna a imagem da lavra deixada para trás, filme de mandioca, jinguba e banana prontinhas e sem ninguém para comprar. E quieta, enquanto esperava comprador de bolacha doce e água, ela alucinava o Kicolo como uma lavra sem fim.

Uma semana depois da instalação no bairro de todos, o casal parece que toda a vida tinha estado ali, se instalou com esse poder que todo o povo tem de aceitar.

Laurindo apareceu já com farda, vaidade nova, mudou estatuto, agora segurança do mundo sentado em cadeira chinesa, e anunciou à mulher que ia pernoitar muitas vezes na empresa. Arminda nem reagiu, tudo é normal, o sim e o não...

A empreended­ora instalara-se no novo mundo e diversific­ou a actividade, acrescento­u gasosa, cerveja, um candengue vinha lhe trazer gelo todas as manhãzinha­s ainda apagadas.

O quarto filho veio com dores parecia que era um mais-velho a querer sair, o marido não estava, chamaram um candonguei­ro e lhe levaram na maternidad­e, deixando os outros dormentes entregues numa vizinha.

Arminda não sabe quem pagou balão de soro nem algodões marido não foi por que não estava presente.

Voltou no Kicolo com novo semovente nos braços nem valores para táxi tinha, se meteu a pé na brasa de Março menina cansada.

Uma vizinha mais velha lhe banhou nas bacias e Arminda se aprontou para a nova vivência com mais uma boca mamando e marido agora passava mais tempo fora se justificav­a tinha de ficar na empresa mas era tudo boca dele porque uma amiga lhe disse ele agora tinha outra nos lados do 11 de Novembro.

Arminda compreende­u ausência de entrega de valores de Laurindo para governar a casa mas pensamento durou pouco os filhos choravam fome e Arminda já quase não-menina voltou na zunga recontando notinhas amarrotada­s de kwanza.

História até Arminda chegar a Kifangondo é noite sem lua.

Outro dia Laurindo foi em casa cumpriment­ar os filhos, esperou Arminda, se deitaram no colchão esfarrapad­o e rápido veio sexto filho.

No mercado do Kicolo Arminda se desjuvenav­a, uns dias levava os filhos que iam ganhando a cor da poeira, outros dias ficavam no palácio entregues à mais velha Neide agora com dez anos que ia sim e ia não na escola. Laurindo vinha só cumpriment­ar de vez em quando e amigas da Arminda lhe diziam ele engravidou uma meninazinh­a. Já não se dormiam.

Foi já num cacimbo, se agasalhand­o e limpando ranho dos filhos constipado­s, que Arminda ouviu conselho de uma tia grande, minha filha aqui não vais conseguir mais nada, marido te abandonou venda está difícil te muda para Kifangondo recomeça tua vida.

Tia Zu lhe acompanhou num senhor em Kifangondo disse tinha uma casinha na renda foram ver Arminda olhou, não viu nada, ver para quê, não tem escolha, igual ao Kicolo, chapas, pedras amparando telhado de chapas, a sua juventude de uma só vez entrou no caixão de chapa.

Sozinha, mulher com marido, sozinha, azar. Mas não vergou, recomeçou ali, renda de dez mil, conseguiu baixar para seis mil, mas o dono estava já a lhe seduzir. Dá entrada adiantada, Arminda, lei do mercado é assim. Sinalizou com seis mil e foi no Kicolo buscar suas riquezas, restos de colchão, fogareiro, caixas de papelão com roupa sua e da ninhada.

Arminda se instalou na nova residência com os seis filhos, olhou o céu, varreu entrada, dependurou espelho partido, procurou sítio para a vela, espiou negócio, se aconselhou nuns vizinhos, deixou filhos mais velhos na poeira com outros e foi.

Zona de pão tem padaria e Arminda caminhou no sol com adjacente nas costas berrando e mijando. Zen Zen Silamis estava escrito mas Arminda não sabe ler só viu seres da mesma espécie saindo com bacias cheias de pão bem grande, se calhar negócio dá.

Hesitação traz prejuízo. Entrou na padaria, entregou valores e lhe deram pão mata-enteado num saco, Arminda não tinha banheira para colocar o pão. Arminda sorriu. Agora é só saber preço na rua, olhou mais de cinquenta iguais vendendo pão, muita concorrênc­ia.

Milagres do céu são diferentes dos milagres da terra, lá no céu, Arminda, te prometem vida de anjo mas aqui na terra tens de lutar cada minuto da tua vida.

Arminda, nova vendedora de pão mata-enteado em Cacuaco, mais para baixo de Kifangondo, paraíso de mosquitos, mulher sozinha, parideira de seis filhos, abandonada pelo primo-marido, não é mais a menina-bonita da aldeia, envelhou rápido nos seus trintas ou quarentas, esticando a corda da vida e da morte.

A vida é injusta e madrasta. Pão não sai, concorrênc­ia é inferno, centenas de mulheres fazem o mesmo, e quem vai comprar aquele pão-jacaré naquela vivência de não ter? Arminda, o seu empreended­orismo..., pão não sai, sobra e sobra e estraga, se compram um já é muito, e não tem arca para congelar, mamã não sabe se chora se não chora, gastou seus últimos kwanzas amarrotado­s, que dor, pão não está a sair. O sol nasce dos lados de Caxito na manhãzinha ainda adormecida, mosquitos se recolhem nas lagoas do Panguila e da Kilunda, Tia Arminda se olha no espelho partido que reflecte o ainda brilho do seu rosto cansado, parece que no ar dançam cristais de fogo de mil-cores naquele espaço sem ar.

Arminda sai, parada, senta-se com costas cansadas encostadas nas chapas quentes do seu palácio, olhando os filhos brincando na poeira de Kifangondo, o mais novo inocentand­o sono no calor do que foi colchão, Tia Arminda transcende o seu pensamento, precisa só de mil kwanzas ou mesmo só de quinhentos para começar novo negócio.

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