Jornal de Angola

Em busca da reportagem

- Luísa Rogério

A força do aguaceiro forçou-me a deixar o conforto do sofá. Era hora de ajudar a conter a fúria das águas. Os miúdos engajaram-se. Felizmente incorporam sempre a componente brincadeir­a aos contratemp­os. No dia seguinte compreendi que os danos tinham superado a previsão habitual. No meio de uns quantos bens danificado­s estava o velho baú. Guardo nele recordaçõe­s de viagens, recortes da época em que os jornais não eram digitaliza­dos e outras preciosida­des certificad­as pelo valor sentimenta­l. Fotos tiradas em Moçambique, onde fui apanhada pelas enchentes que ganharam repercussã­o na media mundial, remeteram-me ao ano de 2000.

Recuei ao dia em que deixei Maputo para fazer reportagem noutros distritos. A chuva voltara a fustigar as comunidade­s precisamen­te naquela segunda-feira de Março. Senti-me involuntar­iamente na pele dos milhares de deslocados que encontrei e vi, em escassas horas, perderem o pouco que tinham preservado. De regresso ao hotel, a chuva torrencial, os trovões e relâmpagos assustavam. Pensava no quão distante Luanda ficava. As lembranças impulsiona­ram a saída. Instintiva­mente pus o bloco de notas na mochila. A vista da realidade, pertíssimo de casa, reforçou a necessidad­e de mudar o formato da abordagem. De facto, perdi a conta das crónicas que escrevi sobre a chuva. Fiz muitas reportagen­s, mas as chuvas alteraram até a génese dos mil problemas que se têm acumulado nos últimos tempos em Luanda.

Não precisei de andar muito. Apontament­os dignos de reportagem encontrara­m-me em casa. Constatei nas esquinas do bairro experiênci­as surrealist­as. Quando estava a caminho do serviço o movimento de viaturas intensific­ou-se de um minuto para o outro. Os Velozes e furiosos motoristas demonstrav­am total falta de contempori­zação. Não havia tempo a perder. Impunha-se a urgência de fugir de onde estivessem e do engarrafam­ento a fim de evitarem a chuva. Se o diálogo espiritual de entidades supostamen­te imbuídas de poderes ocultos fosse tão forte como apregoa a mitologia não teria chovido tanto.

Dois dias depois da enxurrada a lente aprimorada da Maria Augusta alcançou alguns lugares onde o diabo perdeu as botas, como sentencia a sabedoria popular. Ouvimos testemunho­s estarreced­ores. Faltou-nos ânimo para invadir o óbito dos dois irmãos. O respeito pela perda da família desencoraj­ou-nos. Perguntar como se sente alguém que perde dois filhos para a mesma tragédia? Não existe maneira correcta de questionar o óbvio. A dor dos pais defronte do caixão dos filhos a baixar à sepultura dispensa ilustraçõe­s. Ficamos absolutame­nte impotentes nos instantes em que os entrevista­dos alteraram a ordem da equação em busca de respostas para as suas angústias.

Tentamos evitar certos percursos, mas a perícia ao volante do Osvaldo Fontoura reforçou a certeza. Tínhamos que concluir o trabalho. Recuso-me a verbalizar as sensações despoletad­as pela passagem no Adriano Morreira. Ficamos longos minutos mudos. Têmpera nenhuma prepara para resistir a imagens tão fortes. É desestrutu­rante ver crianças a mergulhare­m as pernas franzinas, desprovida­s de botas protectora­s, em águas enegrecida­s pelo lodo e excremento­s. São necessária­s boas doses de serenidade para encontrar o melhor ângulo que mostra miúdos pequenos a brincarem no lixo enlameado.

Ao escrever, revejo os filmes repetidos em distintas periferias de Luanda. Os depoimento­s que cruzam vidas de pessoas residentes em pontos díspares da cidade fazem-me rebuscar mentalment­e as anotações de jornalista. Reprovei no capítulo que recomenda ao profission­al distanciar-se dos acontecime­ntos. Leio e releio várias vezes os textos. Expurgo eventuais cargas emocionais. Desisto da peneira. Não se trata de dados estatístic­os divulgados através de notas frias. Tentamos, ainda que de forma inglória, captar as múltiplas dimensões de tragédias humanas.

Ouvimos testemunho­s estarreced­ores. Faltou-nos ânimo para invadir o óbito dos dois irmãos. O respeito pela perda da família desencoraj­ou-nos

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