Em busca da reportagem
A força do aguaceiro forçou-me a deixar o conforto do sofá. Era hora de ajudar a conter a fúria das águas. Os miúdos engajaram-se. Felizmente incorporam sempre a componente brincadeira aos contratempos. No dia seguinte compreendi que os danos tinham superado a previsão habitual. No meio de uns quantos bens danificados estava o velho baú. Guardo nele recordações de viagens, recortes da época em que os jornais não eram digitalizados e outras preciosidades certificadas pelo valor sentimental. Fotos tiradas em Moçambique, onde fui apanhada pelas enchentes que ganharam repercussão na media mundial, remeteram-me ao ano de 2000.
Recuei ao dia em que deixei Maputo para fazer reportagem noutros distritos. A chuva voltara a fustigar as comunidades precisamente naquela segunda-feira de Março. Senti-me involuntariamente na pele dos milhares de deslocados que encontrei e vi, em escassas horas, perderem o pouco que tinham preservado. De regresso ao hotel, a chuva torrencial, os trovões e relâmpagos assustavam. Pensava no quão distante Luanda ficava. As lembranças impulsionaram a saída. Instintivamente pus o bloco de notas na mochila. A vista da realidade, pertíssimo de casa, reforçou a necessidade de mudar o formato da abordagem. De facto, perdi a conta das crónicas que escrevi sobre a chuva. Fiz muitas reportagens, mas as chuvas alteraram até a génese dos mil problemas que se têm acumulado nos últimos tempos em Luanda.
Não precisei de andar muito. Apontamentos dignos de reportagem encontraram-me em casa. Constatei nas esquinas do bairro experiências surrealistas. Quando estava a caminho do serviço o movimento de viaturas intensificou-se de um minuto para o outro. Os Velozes e furiosos motoristas demonstravam total falta de contemporização. Não havia tempo a perder. Impunha-se a urgência de fugir de onde estivessem e do engarrafamento a fim de evitarem a chuva. Se o diálogo espiritual de entidades supostamente imbuídas de poderes ocultos fosse tão forte como apregoa a mitologia não teria chovido tanto.
Dois dias depois da enxurrada a lente aprimorada da Maria Augusta alcançou alguns lugares onde o diabo perdeu as botas, como sentencia a sabedoria popular. Ouvimos testemunhos estarrecedores. Faltou-nos ânimo para invadir o óbito dos dois irmãos. O respeito pela perda da família desencorajou-nos. Perguntar como se sente alguém que perde dois filhos para a mesma tragédia? Não existe maneira correcta de questionar o óbvio. A dor dos pais defronte do caixão dos filhos a baixar à sepultura dispensa ilustrações. Ficamos absolutamente impotentes nos instantes em que os entrevistados alteraram a ordem da equação em busca de respostas para as suas angústias.
Tentamos evitar certos percursos, mas a perícia ao volante do Osvaldo Fontoura reforçou a certeza. Tínhamos que concluir o trabalho. Recuso-me a verbalizar as sensações despoletadas pela passagem no Adriano Morreira. Ficamos longos minutos mudos. Têmpera nenhuma prepara para resistir a imagens tão fortes. É desestruturante ver crianças a mergulharem as pernas franzinas, desprovidas de botas protectoras, em águas enegrecidas pelo lodo e excrementos. São necessárias boas doses de serenidade para encontrar o melhor ângulo que mostra miúdos pequenos a brincarem no lixo enlameado.
Ao escrever, revejo os filmes repetidos em distintas periferias de Luanda. Os depoimentos que cruzam vidas de pessoas residentes em pontos díspares da cidade fazem-me rebuscar mentalmente as anotações de jornalista. Reprovei no capítulo que recomenda ao profissional distanciar-se dos acontecimentos. Leio e releio várias vezes os textos. Expurgo eventuais cargas emocionais. Desisto da peneira. Não se trata de dados estatísticos divulgados através de notas frias. Tentamos, ainda que de forma inglória, captar as múltiplas dimensões de tragédias humanas.
Ouvimos testemunhos estarrecedores. Faltou-nos ânimo para invadir o óbito dos dois irmãos. O respeito pela perda da família desencorajou-nos