Jornal de Angola

A forma e o conteúdo

- Osvaldo Gonçalves

No início, falava-se do Girabola, mas depressa se passou para o campeonato da Tuga e já se ia na Liga dos Campeões Europeus. Pelo meio, tinham ficado as ligas francesa, inglesa e espanhola, o mercado de transferên­cias a UEFA e a FIFA. Ainda se falou na CAF, mas pouco. Falou-se no nome do Neymar, mas nada se disse acerca do campeonato brasileiro. Nadinha, nem uma só palavra.

Alguém ainda tocou no Moçambola e na liga sul-africana. Dos Camarões e Nigéria só se conheciam os craques, confundira­m-se as nacionalid­ades de ivoiriense­s e senegalese­s, egípcios, marroquino­s, líbios e tunisinos. Todos a jogar na Europa. Muitos ali criados, alguns até lá nascidos. Da Namíbia, nada se falou e da Zâmbia, também aqui ao lado, apenas se referiu àquele acidente aéreo com a selecção do país, os Shipolopol­o, e, claro, Keshi. E da Libéria, George Weah presidente da República, e nada mais.

O que começou por ser uma conversa amigável subiu aos poucos de tom, virou troca de palavras, de acusações. Um falou do trabalho, outro do emprego, outro ainda de salários e regalias, enfim, de dinheiro, de namoradas, de esposas e, least but not last, da mãe de todos e de cada um. Foi nesse ponto que a porca torceu o rabo.

Um dos fulanos, o grandalhão do grupo, fechou as mãos, colocou sobre o tampo da mesa os dois punhos cerrados, os nós dos dedos grossos feitos conchas de mabanga, enfrentou o baixinho sentado mesmo à sua frente e mandou-lhe, em tom ameaçador, que repetisse o que dissera. “Tim-tim por tim-tim”, ordenou. Este sorriu e todos esperavam que o caldo estivesse a ponto de entornar, fosse para gritarem “bilo!”, enquanto se riam à gargalhada, fosse para apartar os contendore­s, sob o risco de acabarem com um olho rocho e a camisa rasgada, sobretudo, ao ouvilo repetir, sílaba a sílaba, a frase que antes proferira:

- Seu filho de pai incógnito! Foi isso o que eu disse, é isso o que tu és.

Agora mesmo é que o caldo estava entornado, pensou a maioria, uns a admirarem a coragem do cambuta, outros a vaticinare­m uma ida para o hospital ou coisa pior. Foi então que viram, com toda a surpresa e mais alguma, o gigante abrir-se num sorriso: - Ah, pensei que estavas a ofender a minha mãe. Azar mesmo não custa, haka!

O grandalhão mandou vir mais uma rodada e um pires de jinguba para “petiscar” e os ânimos serenaram. O que estava para ser o fim da picada logo se tornou numa autoestrad­a da amizade. Tornaram a sorrir os comparsas e a conversa voltou ao futebol interno. Não mais ao campeonato de Portugal, não mais à Liga dos Campeões Europeus. Girabola, só Girabola. Tudo voltou a ser como era antes no quartel de Abrantes.

Fácil será perceber que tentamos ao máximo ser comedidos nas palavras, já que, como bem sabemos, não são bem esses os termos usados nas conversas de bar. Fizemo-lo não para parecer meninos de escola, nem por temer reprimenda, até porque, nesta idade, já poucos nos resta para afinar o tino. Tampouco nos movem pretensos laivos de atavio na linguagem. Talvez nos aviltremos a convidar o prezado leitor para o desafio de recontar esta estória, substituin­do cada palavrinha pelo correspond­ente palavrão de modo a dar-lhe mais emoção, maior credibilid­ade.

Muito nos agradaria se a ouvissemos contar por alguém com a coragem necessária para dar nome aos bois, pois é esse o objectivo do texto. Move-nos a pretensão de chamar a atenção para o facto de que não é necesário dizerem-se palavrões para proferir ofensas, muito menos para se dizerem asneiras. Às vezes, dizem-se palavrões que não são asneiras; às vezes, diz-se asneiras sem proferir um único palavrão. É o velho debate entre forma e conteúdo.

Agostinho Neto disse: “Não basta que seja pura e justa a nossa causa, é necessário que a pureza e a justiça existam dentro de nós.”

O que estava para ser o fim da picada logo se tornou numa auto-estrada da amizade. Tornaram a sorrir os comparsas e a conversa voltou ao futebol

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