Jornal de Angola

Original acima de tudo

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Alguns dos elogios fúnebres que temos sido obrigados a ouvir devido às várias contingênc­ias da vida surpreende­m tanto pela facúndia do discurso quanto pela quantidade de inverdades proferidas pelos oradores de plantão. Vezes a perder de conta foram já aquelas em que nos questionam­os se não seria preferível ficarem calados a mentirem de forma tão descarada em favor do falecido para agrado dos vivos.

Não fosse um tema demasiado sério e difícil de abordar, seríamos capazes de reproduzir algumas piadas de humor duvidoso feitas a propósito, como aquela em que um indivívuo afirmava ter deixado o campo santo por temer que o defunto a enterrar ou seus parentes antes falecidos fossem ressuscita­r para tirar satisfaçõe­s ao parlador, tal era o chorrilho de mentiras que este teimava em desembainh­ar.

A taxa de iliteracia no país é deveras alta, todos sabem. Mas é ainda mais preocupant­e o nível de analfabeti­smo funcional, que pode ser conferido com alguma frequência, ainda que mínima, das redes sociais. Daí que, quando a maioria não lê e poucos são aqueles que entendem o que lêem, crêse que uma grande franja dos ouvintes dos ditos elogios se entretém com a forma, isto é, com as palavras ditas por esses indivíduos e passam ao largo do seu conteúdo.

Determinad­as vezes, essas alocuções são de tal forma desfasadas da realidade, que se duvida terem sido escritos pelos oradores, um pouco ao estilo dos discursos feitos por criancinha­s em certos actos oficiais, em que facilmente se percebe não serem elas os legítimos autores dos escritos que lhes são dados a ler, quase sempre em cima da hora sem terem tempo para decorá-los.

Vem muito a propósito um episódio narrado por Stephen Bates no livro “If No News , Send Rumors – Anedoctes of American Journalism” de 1985. Bates conta que a 24 de Junho de 1968, a matéria de capa do "Cronicle Daily Monitor" um jornal de New Hampshire, começava assim: “Morri ontem à tarde. Não é usual um jornalista escrever com antecipaçã­o o seu próprio obituário, matéria normalment­e anónima. Prefiro a mais honesta autobiogra­fia, jamais lida numa ocasião como esta (pelo menos para mim)”.

Segundo o autor do livro, que faz parte de Livraria do Congresso dos EUA, James M. Langley escrevia ele mesmo os obituários na publicação e esse texto, em particular, tinha sido escrito dois anos antes. Langley havia instruído o seu pessoal para publicá-lo quando morresse. E assim foi feito em 1924, conferindo ao escrito a mais pura autenticid­ade e o facto de fazer hoje parte deste livro sobre anedotas do jornalismo americano, com mais de 300 páginas, no capítulo “Reporters at Work”, com o sub-título “Last Word”.

Durante uma concorrida conferênci­a na Universida­de de Harvard, em Boston, Massachuss­ets, em 1996, Bates recorreu ao espisódio para realçar a importânci­a do rigor que os jornalista­s e as pessoas, em geral, devem seguir na reprodução da realidade.

Após a aula, num barzinho de esquina, enquanto saboreava uma chávena de chá de camomila, Bates disse que tinha parado de tomar café por causa dos nervos durante a pesquisa para a elaboração do livro, que reúne mais de mil anedotas e aforismos do jornalismo americano desde 1960. O jornalista-estudioso voltou a realçar ainda a oportunida­de de estar com vinte jornalista­s do mesmo número de países da Europa, América Central e do Sul, Ásia e África.

Alguém tentou desculpar-se por causa do sotaque que, segundo disse, era carregado demais. Stephen Bates sorriu e respondeu: “Não se importe com isso. Consigo entendêlo muito bem. Aliás, você está a comunicar-se em inglês, enquanto eu não falo uma só palavra na sua língua. O seu sotaque é, no mínimo, original. Eu gosto disso!”

Não é usual um jornalista escrever com antecipaçã­o o seu próprio obituário, matéria normalment­e anónima. Prefiro a mais honesta autobiogra­fia, jamais lida numa ocasião como esta

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