Jornal de Angola

O Presidente e a cultura

- Adriano Mixinge |*

Na última exposição que realizou na galeria Balcony, em Lisboa, o artista angolano Binelde Hyrcan transformo­u o Presidente João Lourenço num ícone. O artista consagrou o Presidente na arte, mas o seu gesto ficou numa zona ambígua, entre a crónica do entusiasmo dos primeiros cem dias de governação e o desejo de colocar o “retratado” no universo da arte angolana contemporâ­nea.

Não é a primeira vez que a imagem de um Presidente da República de Angola aparece numa obra de arte. A diferença dos anteriores Chefes de Estado como Agostinho Neto com a literatura e José Eduardo dos Santos com a música, João Lourenço, pelo menos até agora, não se lhe conhece qualquer relação íntima e criativa com nenhuma das manifestaç­ões da Arte e da Cultura.

No entanto, como contei no livro “Made in Angola: arte contemporâ­nea, artistas e debates” (L`Harmattan. Paris, 2009), João Lourenço, em 1988, referindo-se à vida e à obra do artista plástico Augusto Ferreira, recentemen­te falecido, afirmou que o artista tinha “um profundo sentimento revolucion­ário”. No momento em que o fez, estamos seguros, estava longe de imaginar que, anos mais tarde, o seu rosto irromperia pelas telas de Binelde Hyrcan.

É bem verdade que, antes mesmo de Hyrcan ter utilizado a imagem de João Lourenço, já o tinhamos visto reinventad­o como uma figura nas representa­ções políticas, do tipo polbusting actuais, em que aparece reencarnad­o em Hulk. Nunca pensamos que fosse passar tão rápido à arte contemporâ­nea: o artista vaticina que, algum dia, a imagem do novo presidente passará também ao papel moeda.

Em que contexto é que a figura de João Lourenço aparece como ícone da arte angolana contemporâ­nea? Tudo aconteceu na exposição "Fuck it`s too late" de Binelde Hyrcan, uma exposição que esteve patente ao público até ao passado dia 16 de Janeiro.

João Lourenço aparece, ao menos, em duas das telas apresentad­as por este artista. Numa pintura em acrílico sobre tela da série Kumbu ( 2017), a cabeça do Presidente João Lourenço aparece dentro do que seria o escudo da República, com a inscrição "A vitória é certa". E na segunda delas, feita em técnica mista sobre tela, junto á imagem de Agostinho Neto e José Eduardo dos Santos aparece também a de João Lourenço, dentro do escudo da República, semelhante ao que aparece no papel moeda. Uma réplica desta última imagem está a circular nas redes sociais como uma falsa nota de kwanza.

Não sendo indispensá­vel que o Presidente da República tenha uma relação íntima e criativa com as Artes e a Cultura, o que os criadores, artistas e intelectua­is e, no geral, a sociedade angolana espera é que o Governo que ele dirige faça um diagnóstic­o profundo do actual estado de execução da política cultural de Angola, despolete todos os mecanismos para uma reforma estrutural e funcional da mesma, criando os mecanismos de transição, que esbatam os efeitos das suas limitações financeira­s e da sua, relativa, inoperabil­idade.

Uma vez que a política cultural de Angola aprovada, por dez anos, pelo Decreto Presidenci­al nº15/11, publicado a 11 de Janeiro caducará, em 2021, ainda dentro do actual mandato do Chefe de Estado, ele e o seu Governo terão tempo para renová-la, adaptando-a aos desafios do século XXI, sem qualquer constrangi­mento.

Tal permitiria, no futuro, implementa­r realmente uma política cultural que contribua para: - colocar a Cultura no lugar que lhe correspond­e, transforma­ndo-a num sector transversa­l e indispensá­vel a qualquer estratégia de desenvolvi­mento sustentáve­l, em que possa fruir com a Educação, o Turismo, a Comunicaçã­o e a Economia digital, entre outros sectores; - impulsiona­r uma maior formação de quadros nas diferentes profissões e ofícios das Artes e da Cultura; - promover a modernizaç­ão da gestão das instituiçõ­es artísticas e culturais, bem como a recapacita­ção dos recursos humanos existentes; - orientar o desenho e execução de uma política activa de resgate e inventaria­ção das práticas artesanais e dos saberes endógenos.

E mais: estimular a criação de legislação mais avançada e abrangente aos diferentes segmentos do mercado das artes e das indústrias culturais, com particular urgência em activar a regulament­ação da lei do mecenato para que ela seja realmente um estímulo à economia, ao investimen­to privado e à criação de fundações e associaçõe­s (de empresas e de particular­es) dedicadas às Artes e a Cultura; criar as condições para um investimen­to maciço e faseado do Estado na cultura, permitindo­lhe estimular as pequenas e médias empresas do sector, -incluindo a criação de novas-, para que possam ser mais rentáveis e contribuir­em realmente para a diversific­ação económica e a criação de empregos; - empoderar os serviços culturais das missões diplomátic­as angolanas e dinamizar a criação de uma rede de instituiçõ­es para a internacio­nalização da Arte e Cultura.

Muitos destes aspectos já aparecem no Decreto Presidenci­al Nº15/11, mas nem sempre bem formulados e, portanto, precisam de actualizaç­ão e um melhor enquadrame­nto.

Além do mais, seria óptimo se tudo fizéssemos para saber, por exemplo: - quanto é que, nos próximos quatro anos, o Estado precisaria de investir na Cultura? Quais são os procedimen­tos e mecanismos a desenhar em todas as áreas da Cultura para rentabiliz­ar os investimen­tos que se venham a efectuar? Quais são as áreas e domínios prioritári­os da Arte e da Cultura, em Angola? Como e com que critérios articulars­e-iam os investimen­tos estruturan­tes com os projectos de animação sócio-cultural a nível nacional, provincial ou autárquico? Quantos recursos humanos formar, em que sectores e quanto custariam as formações, a diferentes nivéis? Qual é o actual valor monetário e o estado de conservaçã­o das colecções dos museus e do património artístico e cultural do Estado?

Ter estas e outras questões afins bem respondida­s, qualificad­as e quantifica­das, num plano bem programado, consultado e discutido entre todos (técnicos, especialis­tas, artistas, intelectua­is, associaçõe­s, pequenas e médias empresas do sector, profission­ais liberais, agremiaçõe­s, fundações, entre outras instituiçõ­es), permitiria fazer da Cultura “a variável estratégic­a” referida no preâmbulo da política cultural da República de Angola, ainda vigente.

E aí, então, na terceira década do século XXI, talvez, valeria a pena consagrar a democracia cultural participat­iva como a impulsiona­dora das reformas estruturai­s e da execução de políticas que permitam, por um lado, desenvolve­r melhor todas as expressões da arte e da cultura angolana e, por outro, estar na dinâmica da globalizaç­ão, em pé de igualdade com as outras culturas do mundo.

É bem verdade que, antes mesmo de Hyrcan ter utilizado a imagem de João Lourenço, já o tínhamos visto reinventad­o como uma figura nas representa­ções políticas, do tipo polbusting actuais, em que aparece reencarnad­o em Hulk. Nunca pensamos que fosse passar tão rápido à arte contemporâ­nea: o artista vaticina que, algum dia, a imagem do novo presidente passará também ao papel moeda

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