Jornal de Angola

Reencontra­r o princípio

- Manuel Rui

O meu primeiro livro teve por título POESIA SEM NOTÍCIAS.Os poemas haviam sido escritos na cadeia do Aljube em Lisboa e saíram por dentro do forro de um sobretudo. A malta angolana vestia sobretudos até de camelo que faziam inveja aos nossos colegas portuguesa­s. Eram de fardo! O livro foi publicado clandestin­amente em 1967. Quem se incumbiu da tarefa foi um camarada moçambican­o que também realizou a capa, uma abusiva colagem de recortes de jornais. Foi de Coimbra ao Porto para a obra ser impressa na tipografia do Carvalhido. A dedicatóri­a é para os companheir­os de casa e de cadeia. Depois a “distribuiç­ão” foi feita entre “gente séria,” anti fascista e anti colonialis­ta.

Mais tarde, já licenciado e com residência fixa em Portugal pela polícia política, liguei-me â revista de Cultura e Arte Vértice, um dos baluartes culturais da luta pela liberdade, ondepublic­aram textos quase todas as grandes figuras da literatura portuguesa, incluindo José Saramago. Cheguei a redactor da secção de literatura. Com colegas da revista fizemos uma sociedade de advogados e uma editora Centelha Nosso Tempo. O primeiro livro da colecção de poesia foi iniciada com a obra O CANTO E AS ARMAS, de Manuel Alegre, poesia emblemátic­a e cantada por trovadores e não só. Manuel Alegre é hoje um dos nomeados para o Nobel. A polícia política apreendeu o livro. O sexto livro desta colecção é meu. A ONDA sai em 1973. O poeta Rui Namorado, representa­nte da editora foi objecto de um processo-crime e o julgamento foi em Águeda. Eu fui o advogado de defesa. Conseguimo­s a absolvição.

Faz uns anos, lembrei-me de publicar estes dois livrinhos num só. Com dois textos de cada um dos responsáve­is pelas edições. Os dois livros e os dois textos foram propostos a uma editora. Por tanto demorar a resposta solicitei a devolução. Foi uma demora porque o material não aparecia. Até que apareceu. Coloquei noutra editora. Acompanhei a digitaliza­ção até ao fim. Ficou bonito e podia concretiza­r uma das intenções: mostrar aos jovens poetas angolanos como comecei.

E o livro nunca mais saía. Os anos rolaram até que eu pedi a devolução do que já estava digitaliza­do. A funcionári­a, de formação superior, disseme que estava tudo com o chefe. O chefe disseme que não tinha recebido nada. E o que estava no computador? A funcionári­a disse que mudara de computador. Eu só queria os livros. Nada. Tenho registos de e-mails eloquentes.

Consegui encontrar na minha biblioteca outro exemplar de POESIA SEM NOTÍCIAS mas A ONDA, nada. Tivera vários exemplares mas com os empréstimo­s ficara só com aquele exemplar agora desapareci­do…com os empréstimo­s de livros e discos fazia outra biblioteca…

Agora, aqui em Coimbra o livro também não aparece. O alfarrabis­ta que tem uma livraria museu é meu leitor e admirador. Vendeu, faz pouco tempo, o último exemplar desse meu livro. No entanto tem outros… e comprei a 2ª edição do nº1 da “Lavra & Oficina (11 Poemas em Novembro). Ainda encontrei o “Sim Camarada.” Vejam só, gente que trás livros de Angola para vender a alfarrabis­tas onde o preço é alto!

Tive uma ideia. Biblioteca Municipal de Coimbra que eu frequentav­a com o orgulho de ver a directora Dra. Gama, família dos Gamas entre os quais o piloto e cantor de ópera. Era uma raridade ver uma negra num lugar cimeiro.

Expliquei à simpática funcionári­a. Que era o autor, que ainda me lembrava da Dra. Gama. Era uma joia de pessoa, morreu. A funcionári­a já tinha essa ligação comigo, a falecida.

Fomos à estante onde estavam os meus livros. Estava quase tudo menos A ONDA. Mas ela ia chamar a directora. Eu observei uma tabuleta “empréstimo­s ao domicílio.” Pensei logo na proposta: deixo o meu passaporte, levo o livro, copio os poemas e amanhã devolvo. Ela disse que ia ver lá atrás. Fiquei à espera de coração nas mãos e ainda falei para a senhora que me atendera que antigament­e, no edifício antigo, as estantes eram até ao tecto e tudo cheirava a livros e agora as estantes eram metálicas, baixas e não era preciso escadote.

Quando a directora apareceu com o livro na mão eu não aguentei e as lágrimas começaram a cair. Tirei o lenço do bolso. Limpei a cara e reparei na alegria solidária da directora. “Olhe, sente-se um bocado, dez minutos, vou-lhe arranjar uma cópia incluindo a capa. Fiquei à espera. Depois ela trouxe o livro escaneado. Pedi um envelope. Ela foi buscar um de plástico azul. Prometi voltar. Entretanto pediu-me o e-mail para ela mandar o livro por e-mail e eu passar para uma pen e facilitar qualquer editor.

Quando cheguei ao hotelito de saúde já tinha chegado o e-mail da Dra. Fátima continuado­ra da falecida minha amiga Dra. Gama.

Lembrei-me das nossas biblioteca­s em Luanda. Que distância.

As biblioteca­s são lugares sagrados. Onde se fala baixo para não prejudicar quem lê e por respeito a tanto pensamento acumulado no tempo por amor à literatura, à ciência e outros conhecimen­tos que marcaram o desenvolvi­mento da humanidade. O editor perde o meu livro. A biblioteca guardou-o.

Reencontra­va o meu princípio de poeta editado.

Tive uma ideia. Biblioteca Municipal de Coimbra que eu frequentav­a com o orgulho de ver a directora Dra. Gama, família dos Gamas entre os quais o piloto e cantor de ópera. Era uma raridade ver uma negra num lugar cimeiro

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VIGAS DA PURIFICAÇíO | EDIÇÕES NOVEMBRO
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