Donos de terrenos no Zango vivem há décadas em cubatas de chapas
Bairro Kitondo I acolhe mais de três mil famílias camponesas, que eram detentoras de terrenos, onde foram construídos empreendimentos que dão corpo a vários projectos desenvolvidos pelo Estado na zona sul de Luanda
Nas chapas muito gastas, que encobrem as partes laterais, além do tecto da casota, está grafado o número de registo de moradores, feito por uma comissão instruída pelos Serviços de Fiscalização de Viana. O rabisco CM.KT n.º 479, a tinta preta, não é o primeiro que se marca na cubata. Houve outras vezes este tipo de procedimento.
Embora o clima esteja bastante quente, dentro de uma dessas casas está a anciã Joana Sebastião António, obrigada a ficar mais tempo fechada entre as quatro paredes de chapas de zinco, porque as forças já lhe faltam. Desconhece a idade, mas as vizinhas arriscam avançar que ela tenha mais ou menos 100 anos de vida.
Com uma dimensão de mais ou menos dois metros e meio de altura e três de largura, a casa, aliás, o quarto da avó Joana, como é assim tratada, faz parte das primeiras a serem registadas no bairro Kitondo I, ali bem próximo da chamada “Paragem das motos”, no Distrito Urbano do Zango 3.
Apesar da idade, a velha ainda se dedica a pequenos negócios como os que fazem quase todos os moradores do bairro, que acolhe mais de três mil famílias, mas uma trombose, há cerca de um ano, coloca de lado essa possibilidade. A doença afecta o membro superior direito.
Em consequência disso, a velha Joana António depende, para exercer uma série de tarefas, de uma neta que vive ali próximo e, em muitas ocasiões, da ajuda de vizinhas de boa fé. Nos dias em que não aparece ninguém, ela passa fome. Pelo menos é o que aconteceu no sábado quando o Jornal de
Angola a visitou, por volta das 12h00. “Ainda não comi nada, porque não tenho lenha para ferver o arroz”, lamenta, e, esticando os beiços, indica a bacia onde guarda o produto. Em língua quimbundo, a velha diz, com mágoa, que a vida lhe tem sido ingrata, desde muito cedo.
Dos 19 rebentos gerados, a velha Joana viu 17 dos filhos partirem para o além. O filho mais novo faleceu há bem pouco tempo, com mais ou menos 60 anos. “Eu nasci bem, mas é uma pena que quase todos tenham morrido antes de mim”, lamenta, enquanto luta para fugir de dentro de casa, onde o calor é cada vez mais forte.
Sentada numa cama de madeira, que ocupa quase todo o espaço que tem o único compartimento da casota, a anciã balança as pernas e, com uma das mãos, limpa as ramelas no olho esquerdo, órgão destruído por uma infecção, que causou, igualmente, uma enorme ferida no rosto, além de lhe roubar parte da visão.
Apesar das dificuldades, mais de 30 anos depois, a idosa resiste e espera pelas promessas incumpridas, até agora, do Governo Provincial de Luanda, que havia negociado com os camponeses para estes cederem os terrenos em troca de dinheiro e casas algures no Zango.
Mas, passadas cerca de três décadas, nada disso se vê. A anciã e outras centenas de camponeses, muitos dos quais já falecidos, perderam as lavras e, hoje, vivem atirados à sua sorte, num bairro pobre demais, ali bem rentinho à estrada ZangoCalumbo. O acordo com as autoridades foi apenas uma miragem, acreditam os camponeses, que acusam os responsáveis de Luanda de lhes terem mentido.
Para eles, “não se entende como vários projectos habitacionais foram ali erguidos em todos os Zangos" e nunca foram tidos nem achados.
“Nós demos as nossas lavras, para construírem as casas. Essas casas estão habitadas por outras pessoas, quando nós estamos aqui a sofrer estes anos todos. Mesmo com esta idade, ainda estou à espera de viver o sonho de ter casa própria, como eles prometeram”, confia a velha Joana.
Se avó Joana vive só, outras tantas famílias são bastante numerosas, a julgar pela dimensão das casas que ali existem. Há umas com mais de oito pessoas num quarto de três metros.
Domingas Matias e Faustina Timóteo, ambas de 60 anos, dizem que a situação no Katondo I é deplorante. Por isso, pedem a intervenção urgente das autoridades centrais, tendo em conta as dezenas de vidas que se perdem em cada ano que passa.
Nas duas secções do Kitondo I, divididas pela estrada Zango-Calumbo, que passa no meio do bairro, os casos de óbitos por doenças são muitos. A malária, as diarreias, as infecções pulmonares e da pele e a hipertensão, esta última a atingir grande parte dos adultos, lideram a lista de enfermidades. As moradoras alegam que algumas mortes são resultantes da frustração.
As duas senhoras, filhas de antigos camponeses, chegaram à zona ainda meninas. Viram os pais morrer e, com isso, sentem acabar também o sonho de ter uma casa condigna, assim como perderam a oportunidade de continuarem a fazer o que mais sabem: cultivar a terra.
Agora, na terceira idade, elas e milhares de outras pessoas depositam a sua esperança no Presidente João Lourenço, por quem dizem nutrir muita admiração. “É o único garante de que as nossas vidas podem mudar um dia”, desabafam.
As moradoras recordam que, quando entregaram as lavras, as casas que tinham no bairro eram de capim mas, por causa dos incêndios que chegaram a dizimar famílias inteiras, foram obrigados a construir os casebres de chapas. O lamentável, contam as moradoras, é que as casas prometidas pelo Estado não chegam, mas as autoridades proíbem que os antigos camponeses construam habitações definitivas nos espaços que ocupam actualmente.
“Muitos fazem alguns negócios e podem erguer casitas de bloco, mas não deixam e continuamos nesse sofrimento”, referem.
Sem serviços básicos
A luta dos moradores do Kitondo I não fica apenas pela conquista das casas prometidas, há décadas, pelo Governo Provincial de Luanda. Há outras batalhas por vencer. Quem passa por ali vê algumas casas, embora pequenas e de chapas, com antenas parabólicas montadas nos tectos. Mas, esse cenário, para muitas famílias, é apenas “um luxo na miséria”.
Aquelas tampas brancas expostas por cima das casas não representam a realidade que muitas dessas famílias vivem, tendo em conta que “umas quando tomam o pequeno almoço hoje, só voltam a jantar amanhã”. A fome e a pobreza reinam entre os moradores do bairro, deixou claro o coordenador da área.
José Paulo disse que a fome e as doenças não são os únicos problemas da população. Há falta de luz eléctrica, de água canalizada, de escola e de serviços de saúde.
A água é adquirida a partir de cisternas que passam pelo bairro, enquanto os pequenos electrodomésticos como televisores, rádios e ventoinhas funcionam à base de energia produzida por geradores.
“Nós gastamos muito dinheiro com a gasolina. Numa noite podemos usar mais de 800 kwanzas na compra do produto”, referiu o coordenador, para quem a situação está incontrolável.
O saneamento não funciona e as famílias são obrigadas a improvisar para evitarem o pior.
Por exemplo, grande parte delas deita o lixo que produz nas poucas ruas do bairro. A recolha dos resíduos é feita uma vez ou outra.