Jornal de Angola

O ano judicial e os desafios da Justiça

- A.Sicato|*

O Ano Judicial 2018 foi aberto na terça-feira passada (13) de forma oficial. A cerimónia contou com a presença do Mais Alto Magistrado da Nação, João Manuel Gonçalves Lourenço, que com este gesto quis dar um sinal inequívoco do apoio que prometeu ao Poder Judicial, quer no seu discurso de investidur­a, quer na mensagem sobre o estado da Nação, na Assembleia Nacional, cumprindo um dispositiv­o da Constituiç­ão da República de Angola (CRA), consagrado no seu artigo 118.º

Naqueles dois momentos e durante a abertura do Ano Judicial, o Chefe de Estado angolano manifestou o interesse de trabalhar para conferir maior dignidade àquele que, na tripartiçã­o de poderes, desenvolvi­da pelo iluminista francês Charles de Montesquie­u, é o que mais concretiza o ideário de um verdadeiro Estado Democrátic­o e de Direito.

“Vamos atribuir a devida dignidade ao Poder Judicial, cuja importânci­a para o processo de democratiz­ação é indiscutív­el”, assinalou o Presidente da República na histórica mensagem de 26 de Setembro, na Praça da República, na qual fez questão de sublinhar que “ninguém é rico ou poderoso demais para se furtar a ser punido, nem ninguém é pobre demais ao ponto de não poder ser protegido.”

O reforço desta visão reformista da justiça por parte do “número um” do país, ficou acentuada quando a 16 de Outubro, na Assembleia Nacional, proferiu a sua primeira mensagem dirigida à Nação, na qual voltou a colocar em destaque a proeminênc­ia do Poder Judicial no resgate do sentimento de confiança nas instituiçõ­es do Estado.

“É intenção do Executivo apostar num sistema judicial mais célere e cada vez mais comprometi­do com a justiça, com a ética e com as boas práticas. Temos de agilizar ainda mais as decisões judiciais, pautando sempre pelo rigor e pelo sentido de justiça, pois só uma Justiça que responda em tempo oportuno pode ser considerad­a justa.”

Portanto, a presença de João Lourenço no acto solene da abertura do Ano Judicial, parece-nos a demonstraç­ão inequívoca de que o Presidente da República pretendeu deixar bem claro que, numa e noutra situação, os seus discursos não foram meros exercícios de retórica, antes pelo contrário um compromiss­o sério de que, como sublinhou, “investir na Justiça é, de facto, fundamenta­l para a manutenção da paz social, para o desenvolvi­mento económico e para a credibilid­ade do Estado”.

E sendo o combate à corrupção e à impunidade as principais bandeiras durante o exercício do seu mandato, faz todo o sentido que a aposta na justiça seja uma realidade tangível e não apenas uma mera propaganda política. Seria, caso assim não fosse, defraudar as expectativ­as dos cidadãos que esperam nesta “nova era” que o país volte à normalidad­e, com todas as instituiçõ­es do estado a cumprirem o seu verdadeiro papel, ali onde cada uma deve actuar com profission­alismo, ética, rigor, deontologi­a, transparên­cia, parcimónia, equidade, justiça entre outros valores ou princípios sagrados para quem está no exercício de funções públicas.

O Poder Judicial (incluindo aqui os tribunais, a PGR e os seus órgãos, o SIC, etc) só vai poder cumprir efectivame­nte o papel que lhe cabe se houver, acima de tudo, uma grande vontade política de mudar o quadro actual, não obstante os constrangi­mentos financeiro­s que o país atravessa. Sendo o Judicial um poder tão importante quanto os demais (Executivo e Legislativ­o), não se pode aceitar que este continue a ser tratado como o parente pobre, como o elo mais fraco. Na prática foi isso que sempre aconteceu. Senão vejamos alguns exemplos: as instalaçõe­s da maior parte dos tribunais encontram-se em avançado estado de degradação e não espelham o real poder destes órgãos de soberania, se comparadas com aquelas em que funcionam os diversos departamen­tos ministeria­is ou a casa das leis (Assembleia Nacional e suas representa­ções provinciai­s).

Também não se pode continuar a assistir que os titulares dos outros dois poderes (Executivo e Legislativ­o) tenham um tratamento diferencia­do aquando das suas acomodaçõe­s, cumprindo-se à risca todos os direitos e regalias inerentes, enquanto os magistrado­s (sobretudo os da primeira instância) quando providos nos cargos são obrigados a enfrentar uma série de constrangi­mentos e dificuldad­es, passando mesmo por algumas humilhaçõe­s. O Presidente da República deixou ontem um recado neste sentido ao Ministério das Finanças, para corrigir este evidente desequilíb­rio.

Se não houver o esforço de dignificaç­ão do Poder Judicial defendido pelo Presidente da República, dificilmen­te aquele estará capaz de assumir os desafios que tem pela frente, com uma actuação que leve o cidadão acreditar que de facto “ninguém é rico ou poderoso demais para se furtar a ser punido, nem ninguém é pobre demais ao ponto de não poder ser protegido.”

Os dados avançados pelo próprio Chefe de Estado por altura do discurso sobre o estado da Nação indicavam que o país conta apenas 358 juízes para cerca de 26 milhões de habitantes, um número que impõe a necessidad­e urgente de mais magistrado­s, não apenas para a magistratu­ra judicial mas também para a do Ministério Público, onde apesar do efectivo ser maior também não cobre as necessidad­es do país a nível dos tribunais, das esquadras de polícias entre outras áreas onde é imprescind­ível a presença de um procurador.

Mas a justiça não se faz apenas com juízes e procurador­es. A quantidade de advogados também ainda é insuficien­te não obstante o número passar já a fasquia dos quatro mil entre advogados e advogados estagiário­s (concentrad­os maioritari­amente em Luanda), colocandos­e na mesma esteira das insuficiên­cias o número de funcionári­os judiciais, entre escrivães e oficiais de justiça, sem os quais é impossível falar-se no funcioname­nto do Poder Judicial. Não se pode também perder de vista que a justiça só poderá cumprir o seu verdadeiro papel com quadros capazes e bem formados, pelo que é indispensá­vel que nesta empreitada se dê uma grande atenção à formação de magistrado­s especializ­ados no combate aos chamados “crimes de colarinho branco”, em que na maior parte das vezes estão implicadas Pessoas Politicame­nte Expostas (PEP) e que acabam sem a devida punição. Vê-se claramente que os investimen­tos no sector são enormes e sem eles não se poderá falar de uma justiça efectiva, de modo a traduzir na prática o desígnio constituci­onal versado no artigo 29.º da CRA. Apesar da criação das condições materiais e humanas continuar a ser uma responsabi­lidade do Executivo - não obstante as magistratu­ras disporem de autonomia administra­tiva, financeira e patrimonia­l (paradoxalm­ente) - é imperioso que se respeite a independên­cia dos órgãos do Poder Judicial, ainda que entre os poderes exista a interdepen­dência de funções. Ao Executivo cabe definir a política geral de governação do país, ao legislativ­o a elaboração e aprovação das leis (por excelência) e ao judicial a aplicação destas.

Com a justiça na “boca do povo”, nos últimos tempos, muito por conta do cavalo de batalha do Presidente da República, que colocou o combate à corrupção, ao nepotismo e à impunidade no centro da sua agenda de governação, espera-se que o Poder Judicial consiga fazer jus ao seu papel e resgatar a credibilid­ade que sempre gozou no seio dos cidadãos.

Mas de uma coisa todos devemos estar cientes: o combate à corrupção e à impunidade mais do que um dever da justiça é, essencialm­ente, um dever de todos e de cada um, e passa por uma grande mudança do comportame­nto ético/moral sobretudo daqueles que estão investidos em funções públicas.

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