Médicos são vítimas do sistema de saúde
Carlos Mariano, patologista com mais de 34 anos de exercício da Medicina, não tem dúvida: a classe médica é, muitas vezes, injustamente culpabilizada pelos problemas que assolam a Saúde, quando, em seu entender, é, também, vítima da inoperacionalidade do Sistema Nacional. Entrevistado pelo Jornal de Angola, o médico não hesita em colocar o dedo na ferida.
O Jornal de Angola procurou, na visão de um médico, avaliar as enfermidades que assolam o exercício da Medicina no país e o seu impacto na vida dos cidadãos. Desde as inquietações mais usuais no nosso quotidiano, às políticas do Estado direccionadas ao sector, o Dr. Carlos Mariano Manuel, professor titular da UAN e antigo PCA do Hospital Américo Boavida, não hesita em colocar o dedo na ferida, atribuindo responsabilidades e méritos a quem os merece. Com mais de 34 anos de exercício de Medicina, o nosso interlocutor está familiarizado com a revolta do comum cidadão, agastado com a deficiente assistência médica. Do outro lado da barricada, o actual Consultor em Patologia do Hospital Américo Boavida vê, sobretudo, profissionais a tempo inteiro. Carlos Mariano assume, incondicionalmente, a defesa da classe médica, muitas vezes injustamente culpabilizada, quando, no seu entender, é, também, vítima da inoperacionalidade do Sistema Nacional de Saúde. Destaca a resiliência e perseverança dos profissionais da saúde, perante as vicissitudes que enfrentam no exercício da profissão, mas clama pela liberdade ideológica da Ordem dos Médicos, para “não perverter a sua natureza”.
Como define erro clínico, uma vez existirem queixas de pacientes ou de parentes desses a respeito?
O erro clínico é o estabelecimento de um diagnóstico ou adopção de medidas terapêuticas e fisiátricas incorrectas, que se repercutem de forma nociva no beneficiário do acto assistencial, por decorrência de insuficiente conhecimento técnico do profissional que o realiza. Pode também ocorrer por debilidade da supervisão hierárquica ou em função de condições sistémicas ou institucionais inadequadas para a correcta e completa prestação de cuidados de saúde.
Pode quantificar a média mensal de ocorrência desses erros nas nossas unidades sanitárias?
Embora se presuma que os erros clínicos são muito frequentes nas instituicões sanitárias distritais, municipais, provinciais e nacionais do nosso país (como ocorre em outros países), os mesmos não são compulsáveis e não têm sido registados estatisticamente. Isso acontece porque alguns são quase inofensivos e não percebidos pelos utentes, podendo provocar sequelas de gravidade variável, transitórias e autolimitadas ou ainda permanentes e compatíveis com uma vida normal. Possibilitam ainda a ocorrência de sequelas física e laboralmente incapacitantes. Raramente estes danos são muito graves, provocando a perda da vida. A elaboracão das estatísticas dos órgãos centrais de gestão do Sistema Nacional de Saúde é ainda débil, concentrandose, prioritaria ou exclusivamente, no registo de casos das doenças infecciosas e transmissíveis.
Não há, portanto, evidências (em números) que indiquem maior incidência de erros clínicos por parte de médicos estrangeiros em Angola?
Por não serem registados e coligidos os (mais que prováveis) erros clínicos, nas instituições sanitárias públicas e privadas em todos níveis, não é igualmente possível quantificar essas adversidades da actividade de prestação de cuidados de saúde. Por haver muito menos profissionais de saúde expatriados, do que nacionais, em termos absolutos, eles (estrangeiros) não podem incorrer naquelas adversidades mais frequentemente que os nossos. Contudo, considerando que o acto clínico repousa numa relação biunívoca, entre o profissional de saúde e o doente, que interagem conversando, facilmente se percebe a dificuldade que caracteriza essa interacção e os erros clínicos que surgem, quando envolvem pacientes e profissionais expatriados, com parca desenvoltura comunicativa nas línguas usuais no nosso país. Finalmente, sabe-se que alguns contigentes de profissionais de saúde expatriados não se submetem ao registo na Ordem de Médicos de Angola, o que fragiliza o direito soberano do país, em averiguar e certificar as competências profissionais dos nossos colegas estrangeiros e aferir se partilham connosco este sacerdócio ou são executores de comércio externo dos seus países.
Tem havido responsabilização dos médicos, por erros cometidos no exercício da profissão? Pode indicar casos concretos?
A responsabilização ocorre com frequência, ao nível das instituições sanitárias às quais os profissionais de saúde estão vinculados. Disso o público, geralmente, não é posto formalmente ao corrente. Pode, no entanto, ser aferida no sistema judiciário. Primeiro, tomam a iniciativa os superiores hierárquicos dos clínicos, submetendo os comprovados faltosos à impenitente crítica dos seus pares e à suspensão de participação em actos que envolvam responsabilidade técnica acrescida, decorrendo das duas medidas uma implícita retirada do reconhecimento da idoneidade profissional conquistada ao longo dos anos. Por razões éticas, não são citados nomes.
No foro judiciário, a iniciativa não cabe aos órgãos internos institucionais, devendo a sociedade criar modalidades de monitoramento da actividade de prestação de cuidados de saúde. Isto depende, em última instância, da regulação concebida pelos órgãos centrais do SNS e da actividade legiferante dos órgãos de Soberania do país. No entanto, pode ser muito difícil dissociar uma relação entre
as insuficiências das condições de trabalho e a ocorrência das adversidades em apreço. Em muitos países, não apenas os profissionais, mas também o Estado é, amiúde, processado pelos cidadãos lesados.
No caso do nosso país, pode indicar casos concretos e respectivas sanções?
O exercício clínico institucional está tradicionalmente associado a um sistema vertical e tutorial de supervisão, de forma a garantir segurança aos utentes e aos profissionais de saúde. Na carreira hospitalar, os profissionais submetem-se a uma hierarquia piramidal, estruturada em conformidade com a qualificação profissional e científica e alicerçada nas diversas categorias da longa carreira médica hospitalar. Onde esta estrutura não existe ou é deturpada, ocorrem, com frequência, erros clínicos. Tal sucede como o reverso da moeda da desmotivação, sobrecarga ou insuficiência dos Recursos Humanos ou da tomada de medidas administrativas intempestivas, que contrariam os preceitos organizativos e seculares da actividade. Por outro lado, todo o acto assistencial deve ser minuciosa e tecnicamente protocolado no processo clínico, permitindo a continuidade da assistência por agentes diferentes em períodos contínuos ou descontínuos e, se necessário, fazer-se uma análise retrospectiva de algum procedimento que haja sido realizado, às vezes, até cinco anos antes. Os médicos são universalmente formados a procurarem assegurar-se da correcção dos seus actos, consultando segunda opinião. A Ordem dos Médicos de Angola tem um Código de Sanções.
Assumindo que é impossível atingir a perfeição, no Sistema Nacional de Saúde (SiNS), o que se deve fazer para melhorar o nosso, aproximando-o, tanto quanto possível, da excelência?
O nosso SiNS é composto, por opção política do Estado, por um Serviço Nacional de Saúde (SNS), que é um serviço público (à semelhança, por exemplo, do Serviço de Educação), directamente gerido pelo Ministério da Saúde. Há também Serviços Sectoriais de Saúde (FAA, PN, Clínica Multiperfil da Casa Militar da Presidência da República), Serviços de Saúde Corporativos (Sonangol, Endiama, TAAG, Porto de Luanda, etc.) e o sector privado com múltiplas instituições. É suposto o SNS (do MINSA) ter, segundo a Lei de Bases do SNS, abrangência universal, para prestar cuidados completos (desde a vacinação aos transplantes de órgãos) à população do país, sendo financiado quase exclusivamente com meios públicos. Este desiderato é correcto politicamente e assegura o máximo de solidariedade social. Mas dificilmente é alcançado, devido a um modelo organizativo inadequado para implementá-lo e face à relativa insolvência do Estado para acudir ao seu financiamento. Pessoalmente, pensamos que poderia funcionar melhor, apesar da penúria sistémica de recursos. A construção de um SiNS é uma obra geracional e evolutiva, sendo que as tarefas não realizadas, numa determinada época, oneram e complicam a constelação de outras, a realizar em períodos subsequentes.
Admite que, na generalidade, os angolanos desconfiam dos seus médicos? Porque acontece isso, na sua óptica?
Não admito. Pelo simples facto de a esmagadora maioria do povo angolano ser assistida pelos médicos nacionais. Acredito que existam cidadãos com rendimentos que lhes permitem recorrer ao estrangeiro, onde os respectivos serviços públicos e privados, na generalidade, são mais qualificados que os nossos e, legitimamente, reconhecem, em termos comparativos, o atraso em que nos encontramos. O que não é legitimo é atribuir a decrepitude do nosso SiNS aos médicos, embora estes sejam os mais qualificados dentre os profissionais do sector. É inaceitável empurrar a eles os principais malefícios da insolvência do SiNS. A ninguém é imputado com tanta brutalidade e reiteração, como se faz aos médicos, o infortúnio que grassa nos respectivos sectores. Antes de solicitar a humanização da saúde aos médicos, deviase fazê-lo aos decisores e gestores centrais. Os angolanos e os nossos dirigentes têm muitos motivos para se sentirem orgulhosos dos médicos do país, a avaliar pela forma resignada e consciente como assistem os concidadãos, perante as desafiantes condições materiais de trabalho e frequente hostilização agressiva e gratuita de utentes sugestionados. É urgente desfazer este injusto paradoxo.
Esta falta de confiança terá relação com a procura recorrente de consultas no exterior?
Nunca em Angola deixou de se recorrer a consultas no exterior. Desde que os portugueses cá vieram. Avançamos duas curiosidades históricas: a primeira, relacionada com Baltazar VanDúnem, que, hostilizado por razões religiosas e retaliatórias pelas autoridades portuguesas, submeteu-lhes uma carta, no fim do século XVII, pretextando que tinha necessidade de sair de Angola para ir tratar-se no Brasil ou em Portugal, o que lhe fora consentido; a segunda, relativa ao Rei do Congo, D. Álvaro, sucessor de D. Pedro V, que, por uma simples Hiperplasia da Próstata, não foi tratado em Luanda e os portugueses evacuaram-no (em 1892), para Portugal, tendo regressado, aparentemente, melhorado. Politicamente, foi instituída a Junta Nacional de Saúde, para tratamento dos cidadãos no exterior, o que deixa subentendido o reconhecimento, pelos Poderes Públicos, das nossas insuficiências sistémicas. Os cidadãos que podem fazê-lo à sua custa, fazem bem, ao reeditar uma prática secular. Mas isso não tem nada a ver, em primeira instância, com os médicos! Muitos médicos expatriados, entre nós, até são ensinados pelos nacionais!
Com as dificuldades inerentes ao exercício da profissão, os médicos não terão atingido uma perniciosa rotina de “deixa andar”, ao se sentirem impotentes para promover a mudança?
Finalmente, coloca com lucidez o acento fora do âmbito das possibilidades da comunidade médica, quanto à insolvência do SiNS. Há de facto um certo grau de resignação. Mas, “perniciosa” para eles próprios e não para os doentes, na medida em que os médicos são, dos servidores públicos, os que menos vêem o avanço na sua vida material em comparação aos seus pares em outras áreas. Envolvem-se na sua plenitude no combate às reiteradas epidemias que açoitam as populações e asseguram turnos contínuos de 24 horas em urgências sobrelotadas de doentes. Estão ainda, constantemente, expostos às infecções nosocomiais e às provenientes de quem lhes chega ao regaço para ser tratado, etc, etc. Não há nenhuma rotina de “deixa andar”, do lado dos médicos. Há uma atitude de resiliência, perseverança e respeito, com o fito de mostrar, aos círculos decisórios do país, que são filhos da terra que não viram costas à tarefa de cuidar da vida dos seus concidadãos. Esperam, tão somente, o reconhecimento que lhes é devido. Ser médico é uma forma de vida própria, para assegurar a continuidade dos outros!
A desproporção entre o número de médicos (três mil e quinhentos) e o de habitantes (mais de vinte e seis milhões) não deveria ser motivo para contestação permanente da classe médica, por uma questão de brio profissional?
A melhor forma de contestar é estar em permanente serviço, ao lado dos nossos concidadãos, prestandolhes os cuidados de saúde, pois as nossas habilidades profissionais dificilmente são substituíveis pela mobilização de outros cidadãos. Se os médicos se abstiverem dessa contribuição, os mais desfavorecidos são os que ainda mais o ficam. A desproporção numérica não é uma tragédia; é um constrangimento nacional, ao qual as autoridades competentes do país devem fazer face com criatividade. Há soluções, longe do mimetismo a que se faz recurso, para atenuar os seus efeitos. O brio profissional não se reclama em acções de contestação e não necessita que nos seja certificado, porque a comunidade tem noção do quanto o tem, conserva e o desenvolve, para além de demonstrá-lo quotidianamente. Se assim não fosse, o país endividar-seia muito mais, para preencher os lugares que nos estão atribuídos, muito longe da realidade que vivemos nos primeiros anos após a conquista da Independência. A nossa contestação consiste em pesarmos, pelo trabalho diário, na consciência de quem permitiu ou roubou os biliões que poderiam melhorar o SNS, actualmente exaurido de suprimentos básicos.
Concorda se lhe disser que esta mensagem não tem sido suficientemente contundente? Pelos parcos resultados obtidos ao longo dos anos, a classe médica não deveria (pelo menos) elevar o tom da contestação?
Apesar da condição social dos médicos ser em média bastante precária, a tese a que me vinculo não consiste em interagir com as autoridades e instituições, respectivamente, designadas e instituídas, na base da realização de contestações que inflijam efeitos contundentes aos mesmos. Essas acções poderiam providenciar “armistícios” de curto prazo, mas conduziriam, a longo prazo, a uma crescente polarização de posições, quando o que se deseja é uma convergência de todos os actores interessados (governantes, gestores, servidores e utentes), na compreensão dos desafios que se levantam à edificação progressiva de um SiNS e nas acções que satisfaçam as aspirações da sociedade. Ao contrário, vinculo-me à tese que permita advocacia das opções virtuosas de concepção e gestão do SiNS junto das entidades e instituições competentes, nos círculos decisórios, de moldes a persuadi-las a abraçarem uma praxis governativa consentânea com as aspirações da população.
“O sacrifício dos médicos não é superado por qualquer outro gesto de humanismo”