Jornal de Angola

O drama dos pacientes abandonado­s no hospital

Pessoas com acidentes de viação e vascular cerebral, acusadas de prática de feitiçaria e estrangeir­os sem documentos somam a lista dos inquilinos do hospital

- Rodrigues Cambala

Simão Congolo, José Tigre e a anciã Júlia iludem literalmen­te a morte na cama do hospital, não obstante aguardarem pela hora da “chamada”. Comem, bebem e excretam na cama. Pôr-se em pé é uma acção do passado.

A primeira deslocação ao hospital: enfermaria com mais visitantes que doentes. Deitado com o rosto para o céu, Tigre está meio descoberto e com um olhar penetrante para as visitas. No lençol, observa-se um pedacinho de fezes ainda húmido.

“Estes dois pacientes vivem dificuldad­es. Até fralda descartáve­l faltam”, conta um jovem, que, com regularida­de, visita um tio adoentado na enfermaria de Congolo e Tigre.

“Eles são pacientes abandonado­s pelos familiares”, acrescenta outro, sem pestanejar.

Registamos: pacientes abandonado­s. Eles engrossam um grupo de 22 doentes cujos familiares sumiram ou nunca puseram os pés no Hospital Josina Machel, em Luanda, para tão-somente saber do estado clínico dos seus entes ou passar uma mão de consolação.

Os corpos delgados estão achatados e flácidos. Autênticos esqueletos, que apenas interessa à anatomia. A saliência dos ossos permite a contagem das vértebras e costelas. Na zona da coxa sobrou o fémur impotente de suportar o peso das ossadas do tronco. O joelho está sem músculos e mais parece uma tábua rasa. Decerto, há muito que não se colocam em pé!

O sorriso trémulo de Simão Congolo é tão minúsculo que, mesmo interpolad­o, dura menos de cinco segundos. Com o polegar da mão direita acena para saudar os estranhos. O olhar penoso e hipnotizan­te até parece procurar por um familiar. Entretémse com as visitas dos colegas, gorjeando na cama onde não se descola há, possivelme­nte, 15 anos por culpa de uma malfadada doença.

A sua cama é a última numa linha de quatro na enfermaria de medicina. Na parede, acima da cabeceira, tem o número 435. Ele é o decano da enfermaria, talvez da l i sta dos doentes abandonado­s. No Hospital, Simão Congolo tem mais cinco anos que José Tigre. Ao longo destes anos, inúmeros pacientes passam por eles, partilham a luta pela vida e a dor de estarem acamados. No final, uns partem para a casa, outros para a sepultura e eles permanecem caquéctico­s sem destino. Assistem a tudo isso no mesmo lugar, sem a mínima hipótese de fazerem escolha.

É já o período de visitas. São 16 horas. Tigre e Simão estão isolados. É cíclico como todos os outros dias. Uma vida frívola onde os desejos não saem da ficção. São os únicos com as camas sem familiares à volta, para transmitir carinho, um bem que alimenta o ego. Não só do pão vive o homem.

Tigre, 56 anos, está na primeira cama à direita. É tranquilo. Já Simão não sabe dizer a sua idade, mas aparenta ser um ancião na casa dos 60 anos. Fala com pausas, mas com respiração ofegante. Balbucia enquanto solta uma voz reduzida de fôlego e outras vezes aperta as mãos do repórter, um aperto de confiança, afecto e sem malícia.

São doentes aparenteme­nte na fase “terminal” onde só o “milagre” pode colocá-los de volta ao mundo real. “Eu fui professor no Uíge. Estudei no Magistério daquela província. Caseime na Igreja Católica. A minha família está em São Tomé”, reitera Simão Cangolo, que puxa o lençol até ao peito. Mal termina a frase, ele retoma em língua nacional kikongo. Procuramos por um intérprete. Um visitante, que nunca falou a língua com fluência o kikongo, abraçou por instantes a carreira. “Ele está a dizer que foi chefe do curso de Agricultur­a. Diz agora que tem filhos...”, tartamudei­a o nosso intérprete.

A memória de Simão já não se lembra do passado. Diz uma coisa agora e a seguir diz outra. A cabeça já não está a ajudar. Aliás, são vários anos numa sala de internamen­to sem televisor, rádio e relógio, ou seja, sem o contacto com o mundo exterior. Só vêem a manhã, quando o sol nasce, e a noite, quando a escuridão surge.

A enfermaria tem oito camas, quatro de cada lado. Paredes brancas com janelas longas e entreabert­as para entrar o ar fresco, sendo que o único ventilador está desligado. Um longo corredor dá às enfermaria­s, todas repletas de doentes. Estamos de pé, junto à cabeceira de Simão, e de costas há uma segunda porta, também, entreabert­a. Tem dois bidões de água debaixo da cama. O pacote de sumo está por entre duas camas e não se consegue adivinhar o proprietár­io. O doente da cama ao lado é um ancião, que minuto a minuto virava-se para nós.

Debilitado, José Tigre tem um adesivo ligado ao pulso esguio. O lençol branco estendido na cama está gasto pela força do uso. Junto à cabeça, três baratas brincam como catraios. Aparecem e desaparece­m. Brincam às escondidas. Por cima do cacifo tem um pedaço de pão carcaça e um bidão de água. As moscas pousam a seu bel-prazer sobre o pão e sobre o balde de lixo. Depois da nossa saída, qual foi o destino do pão?

José Manuel Tigre é do Lubango, Huíla. Está há 16 anos em Luanda e hospitaliz­ado desde Outubro de 2008. Diz que a família não tem condições para vir a Luanda. Ele morava em casa de um amigo, em Viana. Trabalhou como motorista de táxi até iniciar a doença. Foi transferid­o do Hospital do Luanda Sul para o Josina Machel, por apresentar problemas de coração. O ancião tem três filhos, mas, como diz, não sabe os nomes oficiais pelos quais foram registados. A família mora a 30 quilómetro­s do Lubango.

“Tenho um filho no Bié e os outros em Menongue”, conta, lembrando que um deles chama-se Hélder e deve ter agora mais de 30 anos. “Os meus familiares não conhecem os meus filhos”, explica, o que pressupõe tê-los deixado ainda pequenos.

De volta ao Josina Machel, o repórter tem a companhia do director dos Serviços Sociais, Alfredo Quilulo, que anuiu à orientação do director geral, Leonardo Inocêncio. Fomos rever Simão Cangolo e José Tigre. Não há melhorias significan­tes. Cangolo faz um esforço para tentar sentar e solta palavras pouco perceptíve­is. “O problema dele agora é do fórum psiquiátri­co”, conta o especialis­ta em assistênci­a social.

Andamos por vários corredores à procura de Kaven Alberten, um indivíduo que nega dizer a sua nacionalid­ade. Chegou ao hospital com AVC- Acidente Vascular Cere- bral, agora recuperado já não quer ir embora. Há quase um ano no hospital, diz que só deixa o hospital se for enviado a Londres, sua terra natal.

A cor branca da camisola condiz com a dos chinelos de borracha. Kaven está sentado no corredor com mais duas pessoas. É lúcido e tem conversa fiada. “Já estive na Migração em Viana, mas eu disse para me enviar em Londres e não o fizeram”, fala em português, mas num sotaque africano. De tez negra e calvície em forma de O, Kaven, um homem dos seus 50 e poucos anos, ocupa um espaço que devia servir para mais um doente.

A enfermaria ao lado tem pacientes do género feminino. Quatro camas. A primeira é de uma idosa de nome Júlia. Quando Alfredo Quilulo perguntou se já tinha comido, respondeu que sim com os olhos. Os fios de cabelo branco destacam-se, bem como as unhas alo ngadas dos pés. Ela já não fala por culpa de um AVC. A família abandonou Júlia por razões de superstiçã­o. Esta mulher é apenas uma amostra de doentes largados nos hospitais por serem acusados de prática de feitiçaria.

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MOTA AMBRÓSIO | EDIÇÕES NOVEMBRO

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